GTec - Newsletter - 29.09
Newsletter quinzenal do Grupo de Estudos em Filosofia e História da Técnica
Olá, pessoal, essa é a mais nova edição da newsletter do GTec. Na edição, vocês vão encontrar a divulgação do próximo encontro – dedicado à leitura de Denise Ferreira da Silva –, mais Donna Haraway, Wendy Chun, Carlo Rovelli, evolução, dor nas costas e escoliose, Martin Bernal, racismo e melancolia de esquerda.
Não esqueçam de curtir, divulgar, compartilhar e assinar pelo botão abaixo!
Próximo encontro
Nosso próximo encontro acontecerá na quarta-feira, 06/10, às 18h. Mais informações sobre o evento estarão disponíveis logo mais no site da APPH. Lembrando que o link para a reunião estará disponível logo antes do encontro no mesmo site.
Para o próximo encontro, prosseguimos no aprofundamento da intersecção entre raça, técnica e humanidade. Para isso, leremos a introdução e a primeira parte de Towards a Global Idea of Race, de Denise Ferreira da Silva, junto do excerto de Immanuel Kant sobre as diferentes raças humanas (em inglês).
Nosso exercício será ler ambos os textos pelo prisma da técnica, reforçando os laços entre modernidade e racialização destacados por Ferreira da Silva na origem do Sujeito – grafado propositalmente com S maiúsculo – através da sua relação com a materialidade e, logo, também com a técnica.
Não muito diferente de Bernard Stiegler, Ferreira da Silva parte do mesmo pressuposto segundo o qual a indagação pelo início do Homem – também grafado intencionalmente com H maiúscula – significa lançar a pergunta pelo seu fim. Como ela afirma, comentando a obra de Friedrich Nietzsche:
(...) a grande realização, a culminação da trajetória vitoriosa da razão que instituiu o homem, o Sujeito, também prenuncia seu eventual desaparecimento. Ele sabe que a conversação filosófica prenuncia seu eventual desaparecimento. Ele sabe que a conversação filosófica que instituiu o Homem no centro da representação também liberou armas poderosas que ameaçam seu mais precioso atributo. Por quê? Porque aquilo que se torna presa da Razão ao se transformar em seu objeto não tem lugar nos domínios da Liberdade.
O livro de Denise Ferreira da Silva está disponível na pasta do GTec no Google Drive. Recomendamos a leitura da introdução, intitulada “A Death Foretold”, e o primeiro capítulo da primeira seção, intitulada “Homo historicus”. Naturalmente, encorajamos todas e todos a ler o restante da primeira seção e do livro – assim como já prevemos a possibilidade (e a necessidade) de mais encontros dedicados a Denise Ferreira da Silva.
Denise Ferreira da Silva
Graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1985 e professora do The Social Justice Institute/GPRS, da University of British Columbia, no Canadá, Denise Ferreira da Silva tem ocupado uma posição singular no panorama da teoria e da crítica raciais nas últimas duas décadas. Atravessando o Sul e o Norte globais, assim como as fronteiras das humanidades e das artes, seu trabalho tem servido de inspiração para uma série de pesquisadoras, pesquisadores, ativistas e artistas no Brasil e no mundo.
Ainda que seja difícil resumir todas suas vertentes de atuação, vale a pena conferir tradução para o português da entrevista concedida para a publicação alemã Texte zur Kunst. Na entrevista, são abordados desde a crítica do Sujeito engendrada em Towards a Global Idea of Race até sua atuação junto a artistas e performers. A tradução foi publicada pela revista DR é um bom ponto de partida para conhecer sua obra.
Felizmente, a filósofa tem uma série de palestras – e palestras-performances – que permitem compreender sua reflexão em funcionamento. No campo das artes, o Pivô Arte e Pesquisa conversou com Ferreira da Silva em março deste ano; para a Escola Repertório de Autodefesa, ela abordou a relação entre arte, ecologia e estética. O Festival de Documentários de Cachoeira – Cachoeiradoc – também hospedou uma fala-performance de Denise Ferreira da Silva, indagando (e questionando) a relação entre o trabalho criativo e a reencenação de cenas originárias de violência racial. Em “O evento racial”, ela explorou ideias de outro de seus livros, A dívida impagável, recentemente traduzido para o português e lançado pela Casa do Povo. Por fim, o Centro Universitário Maria Antonia, da USP, traz na íntegra o curso intitulado “Luz negra”, do qual a primeira aula trata justamente da reflexão desenvolvida em Towards a Global Idea of Race. As quatro aulas estão disponíveis aqui, aqui, aqui e aqui.
Cursos na APPH
Nossa instituição-mãe, a Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades, está funcionando a pleno vapor em outubro e sediará não um nem dois tampouco três, mas quatro cursos ao longo do mês.
Futuros presentes: ficção científica e pensamento contemporâneo, ministrado por Fernando Silva e Silva e André Araújo, debate as relações entre ficção científica e a filosofia contemporânea para a imaginação de futuros possíveis. O curso ocorrerá nas quartas-feiras de outubro, entre os dias 06 e 27, às 19h. Não se preocupem que, para os inscritos, as aulas permanecerão disponíveis, de modo que não entrarão em confito com o GTec.
Já em Arqueologia das mídias: modos de fazer, Marcio Telles da Silveira oferece uma introdução ao campo da arqueologia das mídias, frequentemente citado aqui, questionando as narrativas tradicionais sobre a história das mídias e levando à própria reflexão sobre o que são as atividades de “mediação”. Ou seja, um entendimento das mídias para além das mídias específicas. O curso será às terças-feiras de outubro, com início em 05/10 e término em 26/10, também às 19h.
Édipos: caminhos pela arte, filosofia e psicanálise, medido por Léo Tietbohl, tratará do aparecimento das figurações de Édipo no campo da cultura, desde a Antiguidade até o mundo moderno. O curso será às segundas-feiras de outubro, começando no dia 04/10 e terminando em 25/10, às 19h.
Por fim, Viver e morrer no Chthluceno: a ética do cuidado em Donna Haraway, com Fernando Silva e Silva, continua a exploração do pensamento de Haraway para refletir sobre a possibilidade de uma ética do cuidado e da comunidade que ancore as lutas contemporâneas. O curso ocorrerá nas quintas-feiras e está previsto para começar no dia 07/10 e terminar em 28/10, mais uma vez às 19h.
Mais informações sobre os cursos, podem ser encontradas no site da APPH, na seção Cursos. Os cursos têm quatro aulas de duração, totalizando cerca de 8h/aula. Os valores são amigáveis: R$150 para o público em geral e R$120 para apoiadores da APPH no Catarse. Também são oferecidas bolsas de estudo.
Caderno de campo: Stiegler
Nosso consenso a partir da leitura de “Who? What? The Invention of the Human”, o terceiro capítulo da primeira seção de Técnica e tempo, de Bernard Stiegler, é que é um capítulo em igual medida instigante e difícil. Completando um movimento que ele iniciara no primeiro capítulo da seção, Stiegler parece que apresenta todas suas cartas no capítulo, articulando técnica, tempo, memória, indivíduo, matéria, espécie e o que podemos chamar, na esteira de Gilbert Simondon, do transindividual.
Mesmo assim, três das principais questões levantadas com, a partir e, às vezes, contra Stiegler foram as seguintes:
1. Baseado tanto na différance de Jacques Derrida quanto na relação desta com a gramatologia, a inscrição tem importância fundamental para que Stiegler articule a relação entre tempo, técnica e sua mediação pela memória. Quando a isso, apesar da relativa indistinção ou indiferenciação entre as modalidades da inscrição – oral, escrita etc. –, o primeiro ganho com a proposta de Stiegler é, na contramão de Henri Bergson, atribuir a possibilidade de memória à matéria, o que respeita também o materialismo de uma reflexão sobre a técnica que não pretende enveredar, ainda que dialogue a todo instante, pelo caminho da Gestell heideggeriana e da separação, em último caso, entre o próprio ao humano que é a cultura e o impróprio, que seria a técnica. Ponto para Stiegler;
2. Um segundo ganho é a superação da divisão entre memória social e memória individual, que inevitavelmente leva à aporia da diferença entre a memória como faculdade humana e como discurso. Com Stiegler, essa distinção perde o sentido;
3. Na sequência da materialização da filosofia pela técnica, levantou-se a possibilidade de que a reflexão sobre a técnica possa levar ao aparecimento de uma anti-filosofia. Ainda que seja apenas uma especulação, a questão é compreender quais os impactos de uma abordagem imanente, material e exterior para a atividade filosófica que tradicionalmente se definiu pelo seu contrário, isto é, transcendental, espiritual e interior. Não deixa de ser um tema abordado pela tradição filosófica “alternativa” que só agora tem ganhado espaço, começando com A. N. Whitehead e passando também por Simondon, Deleuze, entre outros;
4. Por fim, Gabriel Gonzaga trouxe a questão da relação entre técnica e linguagem. Inicialmente sugerida por Martin Heidegger, o problema também reaparece em Stiegler quando, partindo de André Leroi-Gourham, ele demonstra a relação entre a libertação das mãos, a corticalização do cérebro humano e a possibilidade de apreensão do mundo pela linguagem. Entretanto, se o escravo – uso intencional da palavra – se define, entre outras coisas, pela perda da linguagem, qual sua relação com essa reflexão? Mais especificamente, trazendo novamente Derrida, qual a relação entre o evento da fala do subalterno e as bases na langue e na parole que estruturam a apreensão do mundo pela linguagem?
Outras referências
Simondon indisciplinar. A série de mesas sobre Simondon organizada pela Red Latinoamericana de Estudios Simondonianos continua ocorrendo. No YouTube, é possível ter acesso às gravações de treze mesas do evento que explora a relação entre Simondon e diferentes saberes. Entre elas, vale destacar a mesa “Magia, objeto sagrado, religiões”, na qual apresentou Vinicius Portella Castro, nosso colega. Já no dia 26/10, Diego Paim de Souza, membro-fundador do GTec, também participará do evento. Fiquem de olho.
Fetichismo do código. Ainda sobre Donna Haraway, no último encontro lembrado do que a autora qualifica como uma espécie de “fetichismo do código”, que prescreve ao DNA e, pode-se dizer, também à programação a expressão de uma verdade interna sobre o organismo. Sobre o tema, explorado no Manifesto Cyborgue, vale a pena conferir o texto de McKenzie Wark no blog da Verso. Também fica a dica de Programmed Visions – Software and Memory, de Wendy Hui Kyong Chun, no qual a pesquisadora canadense aborda a relação entre código e performance. Ao contrário do código como uma escrita total, diretamente ligada à realidade devido a seu caráter performativo e criativo, o código computacional tem uma série de elementos que não funcionam. Detritos computacionais que invalidam a pressuposição de que código é igual a efetividade.
No Brasil, a Ubu publicou o livro Genética neoliberal, de Susan McKinnon, que critica a apropriação e a naturalização da genética na formatação de sujeitos neoliberais.
Por fim, para quem quiser voltar à genética rompendo com a relação direta entre genoma e expressão, fica a referência dessa matéria da Quanta Magazine sobre a nova perspectiva adotada por geneticistas de explorar o chamado “junk DNA”, isto é, sequências de bases genéticas que aparentemente não têm qualquer função, mas estão se revelando mais importantes do que se pensava.
Tempo físico, tempo da física. O tempo é uma dimensão fundamental da reflexão sobre a técnica, ao menos de acordo com Stiegler. Mas o que dizem os físicos sobre o tempo? Sobre o assunto, vale muito a pena conhecer a obra do físico e divulgador científico italiano Carlo Rovelli, que tem traduzido no Brasil o livro A ordem do tempo. Spoiler: para a física, com exceção da termodinâmica, o tempo praticamente não existe.
Na mesma chave, a Editora 34 publicou o belo livrinho O tempo que passa (?), de Etienne Klein, que ocupa posição semelhante na França àquela de Rovelli na Itália. Tal como sua contraparte italiana, na reflexão de Klein o tempo quase desaparece.
Quem tiver interesse nos aspectos mais intrincados da física contemporânea, sobretudo o mundo das partículas sub-atômicas do Standard Model, fica a referência dessa série de manuais da Quanta – mais uma vez ela – que exploram visualmente de maneira didática os componentes dessas teoria (ou seja, do nosso universo).
Uma homenagem à dor nas costas. Para Stiegler, assim como para Leroi-Gourham, o ser humano se tornou humano quando ficou sobre duas pernas e liberou as mãos para realizar suas atividades. O tema, que tem ocupado a arqueologia há mais de um século, trata na verdade sobre a origem do ser humano: quando é possível identificar a
“humanidade” em nossos ancestrais evolutivos, por menos “humanos” que eles pareçam?
Para Thomas Moynihan, partindo de Daniel Baker, a questão pode ser explorada através da relação entre a postura humana e o surgimento de sua psicologia. De certa forma, a alma seria o resultado da coluna. Ao menos, é isso que ele explora em Spinal Catastrophism: A Secret History, numa reflexão que articula biologia, evolução, genética junto a trauma, psicologia e filosofia. Como na reflexão sobre a técnica, Spinal Catastrophism materializa – e corporeifica – uma série de discussões filosóficas e abordagens conceituais.
Da mesma maneira, a relação entre biologia, postura ereta e humanidade é abordada por Pete Wonfendale em “The Reformatting of Homo Sapiens”, publicado em 2019 na Angelaki. No texto, o autor tece a trama entre o pós-humano, o transhumano e o inumano através do fio da divisão entre racionalidade e animalidade, revisando a história do humanismo.
Ambas as referências são uma cortesia do nosso colega Rafael Moscardi Pedroso.
Racismos e suas histórias. Uma das questões que nos ocupou no último encontro foi o surgimento do racismo, ou seja, em que momento a diferença - principalmente cromática - entre os seres humanos foi hierarquizada e tornada absoluta? O tema tem merecido diversas investigações, das quais o próprio trabalho de Denise Ferreira da Silva (e outros pensadores, como Paul Gilroy) é parte.
Mencionamos, no entanto, o livro Racismos: das cruzadas ao século XX, de Francisco Bethencourt, como uma introdução erudita ao assunto. O livro é especialmente valioso para explorar o racismo antes do surgimento do racismo científico na segunda metade do século XVIII.
De certa forma, o mesmo momento de transição, ligado à apropriação ocidental do passado clássico na conformação do sujeito moderno, é o tema do clássico Black Athena, de Martin Bernal. O livro é simultaneamente uma história da Antiguidade com ênfase na conjunção entre África e Ásia e sua ressignificação, assim como ocultamento dessa orientação geográfica, na Europa moderna. Os três volumes estão disponíveis na pasta do GTec no Google Drive aqui, aqui e aqui.
Monstros e as maravilhas da natureza. Uma intersecção entre o tema do racismo e suas histórias é também a indagação pelo momento no qual os “monstros” e as maravilhas da natureza, que incluíam também “maravilhas” humanas. Qual o limite do humano e como ele deve incluir (ou não) corpos desviantes? Essa é uma questão que atravessou a Antiguidade até o Renascimento.
Uma abordagem já clássica sobre o assunto é o livro de Lorraine Daston e Katherine Park, Wonders and the Order of Nature, 1150-1750, que traça a longa história da relação europeia com as maravilhas naturais. Outra história heterodoxa do assunto é Monters of the Market: Zombies, Vampires and Global Capitalism, de David McNally, que, de maneira não muito diferente de Silvia Federici, traça a ascensão do capitalismo através da expulsão, domesticação e repressão dos “monstros”, que muitas vezes podem ser identificados com os subalternos.
Melancolia de esquerda. Cunhada por Walter Benjamin, a expressão “melancolia de esquerda” foi retomada nas últimas duas décadas para expressar o sentimento de desorientação e desilusão com os projetos de futuros alternativos possíveis após o colapso da União Soviética. Sobre o tema, sempre vale a pena reler o texto de Wendy Brown que primeiro colocou o dedo nessa ferida, assim como a elegia, triste e poética, de Enzo Traverso sobre o assunto, publicada há poucos anos no Brasil.
Também sobre o tema, comentamos sobre “Uma ou duas melancolias? 1917, 1968 e o retorno à questão da organização”, de Rodrigo Nunes, professor da PUC-Rio e interlocutor unidirecional e silencioso do GTec (sempre o mencionamos nos encontros). O artigo aborda o problema da organização política e como ela parece ser um dos nós para a superação da melancolia de esquerda.
Lembrando que Rodrigo Nunes e seu livro, Neither Vertical nor Horizontal: A Theory of Political Organization, será a próxima leitura do Circuito de Economia Política e Organizacão, coordenado por Rafael Moscardi Pedro no Circuito de Pesquisas Cibernéticas (CPC). O primeiro encontro de debate do livro está previsto para sexta-feira, 08/10, às 17h30.
Racialização e ocupação em Okinawa. Para entender um episódio de racialização talvez menos conhecido no Brasil, mas responsável por boa parcela da imigração japonesa – o nome é controverso – ao país, vale a pena ouvir o episódio do podcast The Funambulist com Wendy Matsumura. Na conversa, Matsumura trata das atuais relação entre a população do arquipélago de Okinawa – também conhecido como Ryukyu – e a autoridade central japonesa, seu histórico desde o século XVII e a presença de militares estadunidenses na região, transformando-a numa parcela significativamente “colonial” do Japão.
A imagem do card de divulgação é a obra “Mokongo”, de Belkis Ayón. A artista cubana, nascida em 1967 e falecida precocemente em 1999, tratou em sua produção da sociedade secreta afro-cubana Abakuá. A pintura destaca a entidade Sikán, princesa que, ao buscar água no rio, inadvertidamente capturou Tanzé, o peixe encantado que garantia a sobrevivência de seu povo, consequentemente perdendo seu dom divino. Essa e outras obras de Belkis Ayón estão na 34º Bienal de São Paulo.
Essa foi a nova edição da newsletter do GTec. Compartilhe, divulgue e se inscreva para receber nossas novidades. A newsletter é enviada quinzenalmente.
Lembrando que o GTec é uma atividade apoiada pela Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades, com sede em Porto Alegre e ramificações por todos os lugares que a internet alcança. É uma organização sem fins lucrativos, mantida apenas pelo trabalho dos colaboradores e pelas atividades realizadas nela. Por esse motivo, se você puder, apoie a APPH através da conta do apoia.se/apph