GTec - Newsletter - 28.10
Newsletter quinzenal do Grupo de Estudos em Filosofia e História da Técnica
Olá, pessoal, esta é a nova edição da newsletter do GTec. Nesta edição, falaremos de Sylvia Wynter, François Laruelle, afropessimismo, Jean Baudrillard, Gilbert Simondon, Yuk Hui e a relação entre animalidade, espacialidade e tecnicidade.
Já faz um tempinho, mas vale a pena retomar como novidade: temos um canal no Discord! Se você quiser acompanhar as conversas entre as reuniões, receber ou enviar outras referências que não entraram na newsletter ou só trocar uma ideia, basta acessar este link. Só prestem atenção que o link de convite tem validade de sete dias.
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Próximo encontro
Nosso próximo encontro ocorrerá na quarta-feira, 03/11, às 18h. Mais informações e o link para a reunião estarão disponíveis logo mais no site da APPH. Como sempre, a sala da reunião será aberta logo antes do encontro.
No encontro, seguiremos a investigação da relação entre tecnologia e antropologia pelo prisma da raça. Para isso, leremos “Towards the Sociogenic Principle: Fanon, The Puzzle of Conscious Experience, of ‘Identity’ and What’s Like to be ‘Black’”, da filósofa, romancista e dramaturga jamaicana Sylvia Wynter.
Partindo de Frantz Fanon e do conceito de sociogenia para criticar a obra de Thomas Nagel sobre a origem da consciência, Wynter propõe a relação entre os sentidos e a consciência para sugerir a origem da experiência subjetiva. Ressaltando o caráter corpóreo da sociogênese, ao mesmo tempo que extrapolando a mera dimensão biológica, a proposta de Wynter desfazer as divisões, demasiado simplistas, entre humano e não-humano que articularam o projeto de desumanização a partir do qual a população negra, desde já racializada, é excluída da humanidade.
No encontro, leremos a reflexão de Wynter a partir da filosofia da técnica. Qual a relação entre sociogênese e biologia numa filosofia da vida, como em Gilbert Simondon? Qual a importância da matéria para o pensamento, sobretudo o pensamento negro? Se a técnica, seguindo Bernard Stiegler, é o palco do humano, o que está fora desse cenário? E qual a participação de Wynter naquilo que Denise Ferreira da Silva chama de uma “ética da recusa” e pode servir para desfazer o mundo de oposições que consigna à figura do escravizado o lugar do nulo?
O texto está disponível no seguinte link. Para quem tiver interesse na versão efetivamente publicada, ela está disponível na coletânea National Identities and Sociopolitical Changes in Latin America, editada Mercedes F. Durán-Cogan e Antonio Gómez-Moriana.
Sylvia Wynter para aquém do humano
Sylvia Wynter, nascida em 1928 em Cuba de pais jamaicanos, é uma das principais figuras, senão uma das fundadoras do Black Studies nos Estados Unidos. Distribuída em romances, peças teatrais e textos críticos, sua obra tece, desde a década de 1960, uma extensa crítica sobre a “sobredeterminação do humano”, que cria clivagens entre os indivíduos de acordo com sua origem e cor da pele. Essa tarefa, que continua a problematização do humanismo proposta na négritude caribenha de Aimé Césaire e incorpora as temáticas específicas às relações afro-atlânticas no espaço de debate estadunidense, pode ser resumida, como fez Alexander Weheliye, com relação aos Black Studies, como
(...) um empreendimento intelectual, ainda que bastante atento às suas peculiaridades institucionais, cujo principal objetivo é questionar a concepção dominante da humanidade enquanto sinônimo do Homem ocidental, ao mesmo tempo fornecendo as tarefas analíticas para pensar as origens profundamente determinadas pelo gênero e pelo sexo dos conjuntos [assemblages] raciais (Alexander Wehelyie, Habeas viscus, p. 5).
Por esse motivo, para quem tiver maior interesse na obra de Wynter, estão disponíveis na pasta do GTec duas coletâneas que refletem criticamente acerca de seu pensamento a partir da questão do humano. As coletâneas são Sylvia Wynter: On Being Human as Praxis, editado em 2015 por Katherine McKittrick, e After Man, Towards the Human: Critical Essays on Sylvia Wynter, editada em 2006 por Anthony Bogues. Ambas as coletâneas expandem o debate sobre Wynter em direção não apenas à raça e à humanidade, mas também com relação à história e às tradições do pensamento pós- e decolonial.
Por fim, fica também a referência de Not Only the Master’s Tools, coletânea sobre os Black Studies editada por Lewis R. Gordon e Jane Anna Gordon que inclui um capítulo de Wynter, “On How We Mistook the Map for the Territory, and Re-Imprisoned Ourselves in Our Unbearable Wrongness of Being, of Désêtre: Black Studies Towards the Human Project”.
Caderno de campo: Bernard Stiegler
Continuamos nossa leitura de Técnica e tempo, de Bernard Stiegler, agora debatendo mais especificamente, a partir da leitura do mito de Prometeu e de Epimeteu, a relação entre tecnologia e antropologia. As principais questões debatidas estão elencadas a seguir em nosso Caderno de campo:
1. O capítulo traz o dispositivo filosófico do recurso ao mito, demonstrando, quase de maneira espelhada com a apreciação das “duas origens” de Rousseau, que a relação entre tecnicidade e antropologia se estabelece a partir da dupla falta cometida, primeiro, por Epimeteu, que esqueceu de atribuir dons aos humanos, e por Prometeu, que roubou o fogo dos deuses para compensar o esquecimento de Epimeteu. Segundo a leitura de Stiegler, é nesse duplo erro que surge a humanidade, uma vez que ela encontra a duplicidade do fogo e o reconhecimento da mortalidade, ao contrário da imortalidade dos deuses e da perecebilidade dos animais.
Ainda que útil, uma vez que o mito dos irmãos gregos, Prometeu e Epimeteu, permite conceber a humanidade como resultado de um erro, de uma falta que lhe advém, e não da sua própria volição ou engano, como no mito de Adão e Eva, nosso colega Pedro Drumond perguntou pelo que produz, ou seja, quais são os resultados de propor que a tecnicidade revela a mortalidade como elemento principal da definição de humano. Seguindo a pista de Jean Baudrillard, ele questionou se, por trás da definição do humano, não se esconde a oposição entre vivo e morto.
2. Da mesma maneira, o recurso ao mito leva à questão de qual o entendimento que ele efetivamente provê sobre a matéria que trata. Seria o mito apenas um exercício de pensamento? Seria a concepção trágica da tecnicidade uma leitura de Stiegler ou um aspecto inerente no surgimento da humanidade através da técnica.
A pergunta, a princípio pouco relacionada com o texto, levanta, no entanto, um problema que foi debatido por todos no último encontro: de alguma forma, o recurso ao mito não “domestica” o potencial da técnica inserindo-a exclusivamente numa história da formação do humano? Em outras palavras, toda tecnologia produziria uma antropologia?
Com relação a isso, percebe-se a diferença de seu pensamento com o de Gilbert Simondon, que percebe a técnica numa história mais ampla da individuação da qual é certamente importante, mas não necessariamente único ou excepcional. Porém, se a técnica não produzir necessariamente humanos ou, na esteira da questão acima, não incidir necessariamente no limiar entre o vivo e morto, então o que ela produz? O que ela pode vir a produzir?
3. Para encerrar esse tópico, a relação entre mortalidade e perecebilidade, na formulação de Stiegler, pode ser uma abertura para a problematização do pensamento raciológico. Aqui, vale a pena lembrar que, se tanto os humanos quanto os animais morrem, mas morrem diferentemente, pois, para uns, trata-se do fim do indivíduo, enquanto para o outro é uma morte que não ganha significado, então existiriam mortes que são mais importantes que as outras? As implicações dessa questão para uma reflexão sobre a raça parecem evidentes.
4. Uma questão sem resposta foi o tema do objeto técnico em Stiegler. Essa pergunta surgiu da relação entre logos e tekhné em sua argumentação. É fácil entender que ambos são formas de exteriorização, o que justifica sua apreciação sobre não haver nada de inadequado ou inapropriado nas próteses técnicas da humanidade. Entretanto, percebe-se que o logos enquanto tekhné é muito distinto da fabricação de objetos técnicos dotados, como destaca Simondon, de um processo de concretização. Novamente, onde está o objeto técnico na reflexão de Stiegler?
5. Por fim, um caminho para pensar várias dessas questões foi sugerido por Rafael Moscardi Pedroso que, ao centrar sua atenção na figura de Hermes, destacou o papel da tradução na trajetória da tecnicidade. Sua proposta é mais útil ainda não apenas por acrescentar, junto da relação de tradução, o problema da equivalência e, logo, do valor, mas também sugerir que a tradução pode ter um papel fundamental para efetivar o conceito de cosmotécnica, de Yuk Hui.
Para quem se interessou, o texto de Jean Baudrillard comentado por Pedro Drumondo é “A extradição dos mortos”, publicado em A troca simbólica e a morte, disponível na pasta do GTec no Google Drive.
Cursos de novembro na APPH
Em novembro, a Associação de Pesquisa e Práticas em Humanidades está mais uma vez com a agenda lotada de cursos. Todos os cursos têm duração de quatro encontros, totalizando mais ou menos 8 horas/aula, e valor amigável de R$150, com possibilidade de bolsa para acompanhamento dos cursos.
Introdução ao pensamento de Spinoza: Espectros da modernidade, ministrado por Carmel Ramos, é uma investigação sobre “a origem de nossas convicções éticas e políticas mais fundamentais quanto para questionarmos a evidência das mesmas”. No curso, serão exploradas principalmente a Ética e o Tratado Teológico-Político do pensador holandês.
Introducão ao pensamento de Lélia González: Classe, Gênero e Africanidade, ministrado por Érica Saraiva, traz à luz de maneira sintética a obra cada vez mais importante da filósofa e ativista brasileira. O curso tem o objetivo de identificar os principais conceitos e problemas da obra de Lélia Gonzalez, abordando-os à luz dos seus desdobramentos contemporâneos.
Por fim, Introdução ao pensamento de Aby Warburg: Histórias de fantasmas para gente grande, ministrado por Anelise De Carli, visa introduzir a obra do historiador da arte e da cultura Aby Warburg. Figura singular do pensamento e da erudição na transição do século XIX para o XX, Warburg é dono de uma obra que, nos últimos trinta anos, foi reatualizada de forma a se constituir numa potente crítica à história da arte tradicional. Arte, religião e mito, todos serão abordados no curso.
Fica o convite para vocês prestigiarem as professoras da APPH.
Outras referências
Entre o nada e o nulo. A relação entre Denise Ferreira da Silva e algumas tradições do pensamento negro com o trabalho do filósofo (ou não-filósofo francês) François Laruelle foi retomada a partir de texto compartilhado por nosso colega Pedro Drumond que explicita essa relação. Nicholas Eppert, em “(Black) Non-Analysis: From the Restrained Unconscious to the Generalized Unconscious” explora o pensamento de Frank B. Wilderson III a partir da relação entre a possibilidade de um inconsciente negro a partir da discussão sobre o inconsciente proposta por Laruelle. Densa, a contribuição é relevante para mostrar a fecundidade da relação entre o afropessimismo e outros setores da filosofia contemporânea.
Ainda sobre Laruelle, existe uma coletânea em inglês com alguns de seus principais textos que pode servir de introdução a seu pensamento. Intitulada From Decision to Heresy, o .pdf do livro está disponível na pasta do GTec no Google Drive.
Simondon e a filosofia macumbeira. Lucas Villalta, doutorando em Filosofia pela USP, foi o entrevista do podcast Rádio Terrana, projeto do Pimentalab, da Unifesp, e do coletivo Tramadora. No episódio, Villalta tratou da publicação de seu livro, Simondon, uma introdução em devir, publicada pela Editora Alameda, resultado de sua dissertação de mestrado.
A abordagem de Villalta condiz com parte da nossa leitura de Gilbert Simondon como um filósofo da vida a partir da técnica. Por esse motivo, ele destaca a relação entre técnica e magia para dar conta da invenção simondoniana, o que o leva a aproximar sua obra como exemplar de uma “filosofia macumbeira”.
São abordagens heterodoxas da obra de Simondon , como aquela feita por Villalta, que também motivam o GTec.
Arte e cosmotécnica. O último livro de Yuk Hui, intitulado Art and Cosmotechnics, também já está disponível no seguinte link. Continuando o projeto iniciado em The Question Concerning Technology in China, Hui propõe a possibilidade da estética como saída para os dilemas da reflexão sobre a (possível, desejável) variedade de técnicas que é sua principal bandeira.
Epifilogênese na prática. O conceito de epifilogênese, complicada palavra criada por Bernard Stiegler para designar a relação de retroalimentação entre a disponibilidade do meio, as possibilidades da técnica e as potencialidades inerentes à biologia humana no curso da evolução ganhou um novo episódio com uma série de investigações sobre inteligência artificial (AI) que expandem o foco da comunicação e do pensamento para considerar o corpo. Segundo a matéria da MIT Technology Review, uma série de laboratórios têm experimentado com máquinas e modelos neurais que alteram sua forma corpórea para resolver novos problemas, levando à tecnologia a relação corporificada da consciência que já nos é característica.
Para continuar na relação entre espaço e percepção na diversidade dos animais, vale a pena conferir a matéria da Quanta sobre novos estudos a respeito da maneira como os animais se orientam no espaço tridimensional. Descobriu-se que o cérebro atua de maneira bastante diferente em espaços bi- e tridimensionais. Isso, obviamente, é só o começo de um novo entendimento da relação entre corticalização (termo de Stiegler) e meio (termo de Simondon).
Entre o azul. A imagem do card de divulgação do próximo encontro do GTec utiliza a imagem de uma obra de Juliana dos Santos, parte das Experiências azuis que ela promoveu em 2019 no Paço das Artes, em São Paulo. Mais recentemente, Juliana dos Santos esteve na SP Arte, que ocorreu entre os dias 20 e 24 de outubro, com outra obra que explora o azul e sua relação para a significação da racialidade. Para conhecer mais sobre seu trabalho, fica a dica da entrevista, em duas partes, com o pesquisador e professor de história da arte Igor Simões na conta do Vivo Cultura no Instagram aqui e aqui. Aliás, toda a série do Vivo Cultura conduzida por Simões com artistas negros da SP Arte vale a pena ser vista.