GTec Newsletter - 26.11
Newsletter quinzenal do Grupo de Estudos em Filosofia e História da Técnica
Olá, pessoal, nesta edição da newsletter do GTec estamos repletos de referências do pensamento negro radical, bancos de dados relacionados a raça, sistemas de divinação iorubá e algoritmos, assim como trazemos os informes do próximo encontro, dedicado mais uma vez (e sempre) à leitura de Denise Ferreira da Silva.
Não esqueçam que temos um canal no Discord para conversar entre os encontros. Para acessar, é só clicar neste link. Lembrando que o convite tem duração de sete dias.
Divulguem, curtam, compartilhem e se inscrevam na newsletter através do botão abaixo!
Próximo encontro
Nosso próximo encontro será realizado na quarta-feira, 1º/12, às 18h. Mais informações sobre o evento já estão disponíveis no site da APPH. O link para acesso à reunião também estará disponível no site da APPH logo antes do encontro.
No próximo encontro, voltamos à leitura de Denise Ferreira da Silva, agora destacando os dois últimos capítulos de A dívida impagável, coletânea de ensaios que busca ativar a questão do sujeito por meio das relações entre raça e justiça. Os capítulos a serem lidos serão “1 (vida) ÷ 0 (negritude) = ∞ − ∞ ou ∞ / ∞: sobre a matéria além da equação de valor” e “Dívida impagável: lendo cenas de valor contra a flecha do tempo”, sendo o primeiro a leitura principal e, o segundo, leitura complementar para o encontro.
“E se negritude se referisse a definições raras e obsoletas da matéria, no registro da Coisa: respectivamente “substância (…) que forma algo” e “substância sem forma”? Como tal referências afetaria a questão do valor?”
A partir dessa pergunta, Ferreira da Silva pensa a questão do valor relacionando à matéria e à lógica da obliteração que ela percebe na conformação do espaço racial moderno. Para a autora, a “equação de valor” assume a negridade como valor de vida negativo, não como matéria - o primeiro de uma série de argumentos contraintuitivos de Ferreira da Silveira que procuram suspender a consignação dos corpos negros ao nada. É justamente ao reivindicar o “valor nulo” da matéria que a autora procura recusar a limitação entre “vida de nada” e “nada de vida” no qual as vidas negras (ainda) não importam.
Com a leitura de Ferreira da Silva, prosseguimos na tentativa de sondar os limites da relação entre tecnologia e antropologia, isto é, o papel da técnica em compor uma definição do humano. Essa definição sempre implica uma relação de valor que contém o sub-humano e o não-humano? Em que medida a técnica é cúmplice dessa valoração da vida cujos efeitos perversos sobre a humanidade são bastante perceptíveis?
O livro A dívida impagável foi publicado e disponibilizado gratuitamente pela Casa do Povo, instituição social e cultural de São Paulo, a partir das atividades da Oficina de Imaginação Política. Acessem o link para baixar o livro e conhecer mais sobre a atuação dessa instituição.
Caderno de campo: Bernard Stiegler
Chegamos ao penúltimo capítulo de Técnica e tempo com a perspectiva renovada ao encontrar, se é que é possível dizer isso, uma série de temáticas, problemas e perspectivas colocadas em convergência. “Already There”, assim, é um capítulo-chave no projeto de Stiegler e, abaixo, vamos sistematizar as principais linhas da nossa discussão no último encontro:
1. O capítulo é, acima de tudo, um acerto de contas com a filosofia de Martin Heidegger, principalmente com Ser e tempo. No capítulo, Stiegler assume uma diversidade de posições em torno à obra do filósofo alemão, adotando como procedimento de escrita a listagem de definições, até mesmo contraditórias, de seus conceitos principais, como o Dasein. O saldo disso é a percepção, para Stiegler, que seria necessário recusar definir qual é o posicionamento de Heidegger com relação à técnica, o que implica simultaneamente identificar o potencial de cristalização de seu pensamento em posições nostálgicas e/ou até mesmo reacionárias assim como manter aberta a ambiguidade da própria técnica como espécie de pharmakon, isto é, remédio e veneno.
O argumento de Stiegler não é simplesmente o apelo a uma ética da tecnologia, procurando sobredeterminá-la social ou moralmente para que seja bem utilizada, mas, através da não-decisão sobre Heidegger, manter a ambiguidade da técnica que pode ser o sinal de seu papel na composição e na abertura do mundo, que é em si a tarefa do Dasein;
2. No acerto de contas com Heidegger, Stiegler deflaciona, para mencionar a expressão utilizada por nosso colega Pedro Drumond, a tendência do pensador alemão de estabelecer a resistência à capacidade de determinação como signo da autenticidade do Dasein. Em Heidegger, essa busca pela recusa da determinação ocorre na tentativa de evitar a homogeneização do mundo que seria garantida pelo avanço da técnica. Sem rejeitar a técnica, mas procurando ressignificá-la, Heidegger intenta manter bolsões de diferenciação num mundo cada vez mais homogêneo. O problema, entretanto, é que essa recusa ao processo mais amplo pode ser um fechamento do Ser e, por conseguinte, sua própria determinação em âmbitos cada vez mais restritos, o que responderia pelo caráter “reacionário” de sua filosofia;
3. Desarmando a armadilha heideggeriana, Stiegler opera de maneira contraintuitivo. Em sua argumentação, a técnica ocuparia o lugar da tradição que, para Heidegger, criaria essa fixação positiva do Ser no mundo. Mas, seguindo Stiegler, a técnica for abordada como um “desde já”, como um elemento que já está na formação da nossa relação com o mundo, então a técnica é a própria maneira de estabelecer essa relação mais própria com o mundo;
4. Duas consequências menores que resultam daí são, primeiro, a percepção dos sistemas técnicos enquanto sistemas autopoiéticos. Nesse sentido, a capacidade de alteração, inovação e, até mesmo, programação não são contrários à abertura do Dasein, mas elementos constitutivos do estar-no-mundo;
5. A segunda consequência é desfazer a crítica de Heidegger aos mecanismos de contabilização do tempo, principalmente o relógio. A crítica ao relógio em Heidegger funciona sobre o princípio de sua oposição uma “ferramenta” que não pode se tornar “instrumento”, a linguagem. Para Stiegler, no entanto, a linguagem efetua este “desde já” que dá título ao capítulo e, dessa forma, a linguagem é uma técnica, embora não seja redutível a simples instrumento;
6. Todas essas questões levam, por fim, à relação entre técnica, tempo e o Dasein, figura maior com e contra a qual o capítulo se debate. Se o Dasein ganha sentido a partir de sua temporalidade orientada para a morte, isso não significa que o Ente tenha de morrer para que sua trajetória ganhe sentido, mas que a morte atua, para remeter à apropriação de Jacques Derrida por Stiegler, como “différance”, isto é, ao mesmo tempo como adiamento e diferenciação. O salto que Stiegler possibilita é pensar que a técnica, ao contrário do que pressupõe Heidegger, não leva ao fechamento do mundo, mas é parte de sua contínua abertura.
O que nos leva à pergunta a respeito do próprio significado da técnica. Ela participa do fechamento, do acabamento da trajetória do Dasein ou pode ser um elemento de sua progressiva diferenciação e inacabamento?
Outras referências
O conceito de tempo. Em “Already There”, capítulo de Técnica e tempo que lemos no último encontro, Bernard Stiegler parte de um texto menos conhecido de Martin Heidegger cujo título, vertido para o inglês, é “The Concept of Time”. Trata-se da reconstrução em texto de uma palestra proferida pelo filósofo alemão em 1924, logo antes da publicação de Ser e tempo. Partindo da pergunta “o que é o tempo”, Heidegger introduz uma série de conceitos que aparecerão em sua obra maior, como Dasein, disposição, cuidado, temporalidade e historialidade, entre outros.
Na pasta do GTec no Google Drive, disponibilizamos a tradução para o inglês deste texto. Fica a sugestão para quem quiser conferir a trajetória de Heidegger entre 1924 e a publicação de Ser e tempo em 1927, assim como para quem quiser confrontar a leitura que Stiegler faz desse texto.
Pensamento negro radical. A editora Crocodilo está com pré-venda do livro Pensamento negro radical: antologia de ensaios. Com apresentação de Maria Elvira Días-Benitez, o livro conta com traduções de textos de Hortense Spiller, Sylvia Wyinter, Saidyia Hartman, Fred Moten e da autora do texto do nosso próximo encontro, Denise Ferreira da Silva, sendo a maior parte das contribuições ainda inéditas. Para quem tiver interesse, segue o link para comprar o livro com desconto.
Introdução ao afropessimismo. Uma corrente de pensamento que seguidamente aparece em nossos encontros, o afropessimismo ganhou destaque com a publicação recente do livro homônimo de Frank B. Wilderson III, aliás já traduzido para o português e editado no país. Quem busca uma introdução de qualidade aos debates sobre o afropessimismo, suas principais questões e até mesmo as críticas feitas a essa corrente teórica, confere o artigo “A condição sem análogo da antinegridade: uma introdução ao Afro-pessimismo”, de Allan Kardec Pereira.
O texto, disponibilizado no academia.edu, faz parte da coletânea Pensamento afrodiaspórico em perspectiva: abordagens no campo da história e literatura, editada por Fernanda Rodrigues de Miranda e Marcello Felisberto Morais de Assunção.
Além de Allan Kardec Pereira, quem também tem contribui para o livro é nosso colega de GTec Gabriel Gonzaga, que assina um belo texto sobre imaginação histórica e temporalidade em Paul Gilroy.
Ifá e tecnologia. A newsletter Desvelar, organizada por Tarcízio Silva, já mencionada diversas vezes aqui trouxe a referência de mais um projeto que explicita a existência de diferentes tecnicidades. Trata-se do Tech Ancestral, criado por Jaqueline de Almeida e que reúne pesquisas que abordam a relação entre o Ifá, sistema de divinação ioruba, e códigos binários.
No âmbito do GTec, vale a pena conferir esse projeto que trata, pode-se dizer, de cosmotécnica na prática.
Palmares digital. Em celebração do 20 de novembro, o IFCH/Unicamp lançou o projeto Documenta Palmares, base de dados desenvolvida por Raphael Kubo sobre Palmares e a resistência negra no que atualmente é o Nordeste brasileiro. A base de dados contém fontes de época, bibliografia secundária e uma série de mapas interativos que permitem explorar os diferentes episódios de resistência, confronto e as maneiras de ocupação do território pelas comunidades quilombolas.
É um instrumento de pesquisa que vem suprir uma lacuna ao reunir a documentação sobre Palmares e outros quilombos que estava dispersa pelos acervos de instituições diferentes.
Poéticas negras dissidentes. Negro Leo é um dos principais músicos e artistas da vanguarda negra que se estabeleceu no Rio de Janeiro desde o final dos anos 1980. Para compreender sua trajetória e explorar o significado de sua atuação, a Numa Editora está em campanha de pré-lançamento do livro Deixa queimar, escrito por Bernardo Oliveira, espécie de biografia, entrevista e análise de sua trajetória. Segue o link para adquirir o livro e apoiar a editora.
“Alma no olho”, de Zózimo Bulbul, obra fundamental na trajetória do cinema negro brasileiro, é a referência do cartão de divulgação do próximo encontro do GTec. Metáfora do percurso da escravidão à libertação, o curta-metragem está disponível para ser assistido no YouTube, graças à atuação do Coletivo INÁ.
Essa foi a nova edição da newsletter do GTec. Compartilhe, divulgue e se inscreva para receber nossas novidades. A newsletter é enviada quinzenalmente.
Lembrando que o GTec é uma atividade apoiada pela Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades, com sede em Porto Alegre e ramificações por todos os lugares que a internet alcança. É uma organização sem fins lucrativos, mantida apenas pelo trabalho dos colaboradores e pelas atividades realizadas nela. Por esse motivo, se você puder, apoie a APPH através da conta do apoia.se/apph