GTec - Newsletter - 22.12
Newsletter quinzenal do Grupo de Estudos em Filosofia e História da Técnica
Na última edição da newsletter do GTec do ano, falamos sobre o que pensamos para o ano que vem, retomamos nosso último encontro e ainda temos espaço para Simondon, Laruelle, Yuk Hui e os problemas da universidade. Uma edição de 2021 com espírito de 2022!
Não esqueçam que temos um canal no Discord para conversar entre os encontros. Para acessar, é só clicar neste link. Lembrando que o convite tem duração de sete dias.
Divulguem, curtam, compartilhem e se inscrevam na newsletter através do botão abaixo!
Férias do GTec
O GTec entrará em merecidas férias nos próximos dois meses. Isso não significa que não nos veremos em janeiro e fevereiro. Nossos próximos encontros serão em 19/01 e 16/02.
Em janeiro, faremos uma reunião para decidir os rumos do próximo ano e estabelecer o cronograma de leituras que levaremos adiante em 2022. Para fevereiro, ainda não temos definição do que será o encontro, mas ele será desdobramento da reunião de janeiro.
Mais espaçados, os próximos encontros são – naturalmente – abertos a todas e todos com interesse em participar e contribuir com o GTec.
Em 2021, começamos os trabalhos em 13 de janeiro com a leitura de Estrela Vermelha, de Aleksandr Bogdánov, e acabamos com o término do primeiro volume de Técnica e tempo, de Bernard Stiegler. Passamos do encontro 11 para o encontro 34, tudo isso mantendo a frequência quinzenal de encontros através do distanciamento social, dos piores momentos da pandemia e do alívio, que esperamos que se mantenha, com o avanço da vacinação.
Nesses últimos doze meses, os encontros do GTec foram ocasiões de felicidade e cumplicidade, desafio e diálogo intelectuais; nos encontros, aprendemos o valor da leitura coletiva e colaborativa, realizando tudo o que um grupo de estudos se propõe fazer.
Se você participou das reuniões com frequência, se participou ocasionalmente, se acompanhou pela newsletter, em todos os casos foi uma tremenda sorte e uma grande felicidade ter lhes encontrado a partir do GTec.
Em 2022, esperamos fazer muito, muito mais. Será um prazer contar com vocês novamente.
Caderno de campo: Bernard Stiegler
Terminamos nossa leitura do primeiro volume de Técnica e tempo, de Bernard Stiegler. Poucas vezes foi fácil, muitos momentos pareciam intransponíveis, mas graças ao debate e à leitura coletiva conseguimos avançar em diversos pontos que individualmente (falo por mim) não seriam possíveis de avançar. Técnica e tempo é um daqueles livros que fascinam por sua complexidade, encantam por sua dificuldade e, com isso, se mostram companheiros de trajetória em momentos de revisão dos postulados que sustentamos para compreender o mundo. Abaixo, segue um resumo do que debatemos no último encontro:
1. O capítulo é estruturado em torno da tentativa de não hierarquizar entre o que Stiegler chama de quê e de quem. Por que isso? Para rebater a leitura de Heidegger que comete o engano de associar o Dasein ao quem e, com isso, privilegiar o sujeito sobre o mundo na leitura situacional do Ser que propõe em sua obra. Stiegler, por sua vez, procura recuperar a dignidade do mundo na leitura do Ser a partir de Heidegger, propondo que o Dasein não se concentra num ou noutro polo, no quem ou no quê, mas contém ambos. Como bem resumiu nosso colega Pedro Drumond, não se trata de escolar entre quê e quem, entre mundo e sujeito, mas compreender a différance composta por quê e por quem;
2. Tudo isso parece esotérico num primeiro momento, mas é importante porque a crítica de Heidegger à técnica moderna não deixa de considerar que existiria um modo impróprio de se relacionar com o mundo, que é aquele fornecido pela técnica através da Gestell e das ferramentas da mensuração e da exatidão. Esses modos técnicos de se relacionar com o mundo são mal-vistos por Heidegger. O golpe de Stiegler é apontar que essa desvalorização é produzida pelo próprio filósofo alemão que, ao priorizar o quem como critério para uma relação apropriada com o mundo, acaba reduzindo o quê ao objeto de um sujeito, criando uma relação hierárquica entre sujeito e mundo;
3. A consequência da “virada” proposta por Stiegler é que, ao contrário de Heidegger, a mensuração e a exatidão, que seriam associadas à técnica, não esgotam o mundo. Os meios técnicos e as operações técnicas não empobrecem o mundo diminuindo sua imprevisibilidade; pelo contrário, tal como estabelecido no capítulo anterior do livro, é possível dizer que a programabilidade do mundo é sua abertura para um trabalho contínuo de criação e desfazimento. Nesse mundo que é constantemente criado e desfeito através da técnica, medir é estabelecer relações;
4. A relação entre técnica e tempo é dada mais imediatamente pela relação entre antecipação e atraso, personificadas por Prometeu e Epimeteu, respectivamente. Isso é baseado numa leitura de Edmund Husserl que, num primeiro momento, expande a retenção para incluir a retenção terciária e, num segundo momento, contra Heidegger novamente, procura responder à pergunta pela durabilidade do mundo;
5. No primeiro caso, Stiegler expande as categorias de Husserl, elas mesmas elaboradas em resposta Franz Brentano para dar conta da relação entre consciência, percepção e tempo. As duas formas da retenção em Husserl indicam a percepção e a rememoração, enquanto a proposta de Stiegler é vinculá-las aos objetos do mundo, que são técnicos, os quais garantem a memória mesmo do que não foi vivido em primeira mão. Essa permanência do mundo mostra a necessidade de revalorizar o quê;
6. Uma consequência da proposta de Husserl é que a temporalidade é algo que sofremos mas não representamos ou projetamos. Isso se choca, porém, com a reflexão de Heidegger, uma vez que o pressuposto de Husserl reduz a cognição ao reconhecimento de algo estabelecido no passado. Com Heidegger, entretanto, o Dasein é orientado ao futuro, de modo que o passado é parte do movimento para frente que o Ser realiza. É justamente sobre essa proposição que Stiegler constrói a relação entre antecipação e atraso, com o corolário de que toda cognição é posterior ao fato;
7. Para encerrar esse ponto, Stiegler volta a criticar Heidegger porque este, apesar de compreender a direção futura do Dasein e de ressaltar a importância do mundo na vivência do Ser, acaba por menosprezar sua participação no conhecimento. É justamente porque Heidegger atribui e depois retira importância ao mundo – ao quê – que ele chega a uma compreensão negativa da técnica;
8. Outro ponto levantado por Stiegler e retomado na discussão por Rafael Moscardi Pedroso é que a valorização do mundo é correlata a sua indeterminação por qualquer sujeito específico. Isso recai, na verdade, sobre a compreensão do que é o sujeito. Stiegler escapa à armadilha de associar o humano a quaisquer predicados específicos que, uma vez destronados, significariam o “fim do humano”. Em outras palavras, ao recursar determinar o ser humano de um modo ou de outro, Stiegler consegue escapar à necessidade de postular o “fim do humano” e, com ele, o “fim do mundo”. Ambos continuam graças à relação entre programabilidade e imprevisibilidade que é inerente à técnica;
9. Por fim, tal questão recai sobre a relação entre vida e morte, que já estava colocada na retomada do mito de Epimeteu por Stiegler. No capítulo final do livro, Stiegler abre a possibilidade de vida e morte não serem opostas, mas parte de um contínuo que é, como sua definição de técnica, maior que a vida. Não seria por isso que os objetos técnicos são de difícil apreensão por uma dialética da existência?
Outras referências
Stiegler em poucos caracteres. Nosso colega de GTec, Pedro Drumond, âncora que salvou a leitura do livro em inúmeros momentos, publicou uma thread no Twitter com alguns dos resultados da nossa leitura de Técnica e tempo. No fio, Drumond destaca que o pensamento de Stiegler parte da realidade da técnica moderna, responsável pela incrível aceleração da experiência dos últimos dois séculos, mas não está preso a ela, buscando revertê-la ou retornar a um lugar de origem anterior à própria tecnicidade. Como destaca,
(...) o pensamento de Stiegler, à altura de nosso tempo, não é sobre o nosso tempo. Acontece que é apena na inquietação do nosso mundo contemporâneo, marcado pela desorientação e por uma acelerada corrente de invenções, implementações e superações de tecnologias que teríamos as condições explícitas de compreender que essa desorientação não é um produto indesejável do regime tecnológico do nosso mundo, mas causa técnica de todo e qualquer mundo.
Para conferir o fio inteiro, é só clicar aqui.
Simondon e Laruelle. Um dos nomes que apareceram nas nossas reuniões, muito graças a Pedro Drumdond, mencionado acima, François Laruelle entrou em novo par filosófico, agora com Gilbert Simondon. Em “Making Sense of Power: Repurposing Gilbert Simondon’s Philosophy of Individuation for a Mechanist Approach to Capitalism (by way of François Laruelle)”, Laura Lotti propõe pensar a constituição do capitalismo pelo prisma da individuação do conjunto formado pelo humano e pela natureza através do desenvolvimento de determinadas interfaces – mais especificamente, o dinheiro. Com isso, a individuação se transforma na base de uma teoria do valor ligada à maneira como os conjuntos formados por indivíduos e sistemas técnicos se relacionam com o mundo.
Yuk Hui em dose dupla. O filósofo de Hong Kong, extensamente citado nas reuniões e nas edições da newsletter, retorna com outras duas contribuições que têm relação com o que debatemos a partir de Simondon e de Stiegler. Em “A Politics of Intensity: Some Aspects of Acceleration in Simondon and Deleuze”, escrito em co-autoria com Louis Morelle, o propósito é compreender a noção de “aceleração” em Simondon e Gilles Deleuze. Para os autores, em vez de apreender a velocidade, um caminho melhor é dado pelo entendimento da noção de “intensidade” em Simondon e como ela é retomada por Deleuze na reformatação da ontologia proposta por este.
A segunda contribuição, por sua vez, é uma pequena reflexão sobre digitalização, memória e arquivos pessoais. O artigo, publicado em 2015, interessará todas e todos que refletem sobre a relação entre memória pessoal e as tecnologias de armazenamento da informação.
Dívida, tempo e raça. É comum ouvir sobre a proibição medieval, reforçada pela Igreja Católica, sobre a prática da usura. A resposta habitual, que não deixa de estar correta, é que a cobrança de juros significaria a cobrança sobre o tempo, o qual não pertenceria ao plano humano, mas sim ao divino. Sean Capener, em sua tese de doutoramento, “The Time That Belongs to God: The Christian Prohibition on Usury in the 12th-13th Centuries and the Making of the Subject of Debt”, propõe um desdobramento a essa constatação, afirmando que foi o surgimento da ideia de raça que possibilitou a prática da usura. Para o autor, o mediador da raça permitiu distinguir entre sujeitos que tinham posse de seu tempo e aqueles que não tinham, instituindo a diferença que tornou possível, de um lado, a dívida e a escravidão, do outro lado, a cobrança de juros. Dívida, tempo, raça e, diríamos, também a técnica, estão reunidos na história contada por Capener.
Cripto na berlinda. Talvez a tecnologia mais comentada do ano, as blockchains, criptomoedas e NFTs foram tema de acalorados debates e não parece que a discussão arrefecerá em 2022. Para escapar às perspectivas mais otimistas, frequentemente ingênuas, o The Syllabus, plataforma criada, entre outros, por Evgeny Morozov, criou o The Crypto Syllabus com textos críticos, resenhas e entrevistas sobre o assunto. O site do projeto foi lançado há poucos dias e se destaca pela produção de conteúdos novos que buscam expandir a discussão em torno do assunto.
Para quem quiser uma porta de entrada, fica a dica da entrevista de Briano Eno com o projeto no qual o músico acaba com as NFTs.
Sufrágio digital. Marie Tessier, moderadora de comentários do The New York Times, recentemente lançou o livro Digital Suffragists, no qual defende o desenvolvimento de ferramentas e plataformas que deem mais espaço para as vozes de mulheres em ambientes online. Percebendo que a maioria dos comentadores de notícias são homens, Tessier afirma haver um problema de design, uma vez que o comentário linear em blogs e sites favorece apenas um tipo de público, o masculino. A partir daí, a autora pergunta como construir instrumentos democráticos de convivência que reajam ao silenciamento que as mulheres frequentemente sofrem no espaço público. Digital Suffragists é uma boa contribuição ao debate sobre viés algorítmico e esperamos que logo seja traduzido para o português.
Universidade sem condição. Falta de recursos, dificuldade de cumprir sua missão social, precarização das relações de trabalho, restrição de acesso, débitos estudantis, questionamentos sobre o quê e o porquê do ensino, não são poucos os desafios da universidade na atualidade. O GTec nasceu da insatisfação com as barreiras disciplinares e com o desejo de explorar, como toda a APPH, o espaço liminar entre o fora e o dentro da academia. Por esse motivo, chamou nossa atenção uma série de publicações que tratam, de uma forma ou de outra, do atual estágio da universidade.
Na revista Piauí, a matéria intitulada “Triturando diplomas”, assinada por Evanildo da Silveira, trata do outro lado da “fuga de cérebros” no Brasil: a precarização de doutoras e doutores com formações cada vez melhor mas que não conseguem colocações que correspondam à sua trajetória.
No exterior, Shannon Mattern recuperou, no Twitter, a trajetória de Freddy Pearlman, co-criador da Detroit Printing Co-Op. Pearlman era professor de economia na Western Michigan University, nos Estados Unidos, no final dos anos 1960 quando, ao fazer um curso em Turim, viajou até Paris para participar nas manifestações de Maio de 1968. De volta aos Estados Unidos, ele participou de atividades de militância até ser demitido da universidade em que dava aula, ocasião que propiciou a escrita de “I Accuse This Liberal University of Terror and Violence”. Logo depois, junto de Lorraine Pearlman, sua esposa, criou a Detroit Printing Co-Op, dedicada à publicação de panfletos que questionavam a estrutura da universidade e as relações de trabalho na sociedade de sua época.
Entre a arte e o ativismo, o trabalho de Freddy e Lorraine Pearlman é parte da efervescência política e cutural dos anos 1960 e 1970 que procurava imaginar outros mundos possíveis. Para conhecer mais sobre os Pearlmans, segue a indicação deste texto da Artforum publicado no ano passado.
Também no Twitter, vale a pena conferir a resposta de Alexandra Elbakyan, fundadora do Sci-Hub, aos publishers internacionais de periódicos. A carta é – também ela – um manifesto por outras formas de atuação na academia.
Osmundo Pinho, professor de antropologia na Universidade Federal da Bahia, prefaciou e traduziu a introdução de The Undercommons: Fugitive Planning & Black Study, de Fred Moten e Stefano Harney. O texto, ao ressaltar as relações de trabalho inerentes à prática acadêmica e a constante espoliação do tempo e formação dos estudantes em situações precarizadas de emprego, expõe a necessidade de escapar à universidade liberal constituída e à narrativa da tragédia comum que assolaria seus membros mas ofusca as desigualdades entre eles. Vale a pena conferir a tradução de Pinho para o texto, acessível aqui.
Para encerrar, mais duas leituras críticas sobre o assunto. “A melancolia na universidade brasileira”, de Juliana Mesomo, publicado no Máquina Crísica, é uma brilhante reflexão sobre os dilemas da narrativa de crise da universidade brasileira. E não é possível esquecer também “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, de Lélia Gonzales, texto que começa justamente com uma cena de embate sobre como falar na academia e seus modos de exclusão.
Tudo isso é material para avançar no caminho da construção, como já disse Jacques Derrida, de uma universidade sem condição, um espaço do livre-pensar que retome sua relevância pública e social.
São votos do GTec para 2002.
Essa foi a nova edição da newsletter do GTec. Compartilhe, divulgue e se inscreva para receber nossas novidades. A newsletter é enviada quinzenalmente.
Lembrando que o GTec é uma atividade apoiada pela Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades, com sede em Porto Alegre e ramificações por todos os lugares que a internet alcança. É uma organização sem fins lucrativos, mantida apenas pelo trabalho dos colaboradores e pelas atividades realizadas nela. Por esse motivo, se você puder, apoie a APPH através da conta do apoia.se/apph