GTec - Newsletter - 15.10
Newsletter (mais ou menos) quinzenal do Grupo de Estudos em Filosofia e História da Técnica
Olá, pessoal, esta é mais uma edição da newsletter do GTec. Nesta edição, falaremos sobre o próximo encontro, Yuk Hui, Catherine Malabou, Saidiya Hartman, colonialismo de dados, branquitude, François Laruelle e nossa leitura de Denise Ferreira da Silva.
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Próximo encontro
Nosso próximo encontro ocorrerá na quarta-feira, 20/10, às 18h. Mais informações podem ser encontradas no site da APPH. Também no site da APPH será disponibilizado o link logo antes do início da reunião.
Em nosso próximo encontro, atravessamos a fronteira e chegamos à segunda seção de Técnica e tempo, intitulada “A falta de Epimeteu”. Leremos o primeiro capítulo desta seção, intitulado “Prometheus’s Liver”.
No capítulo, Bernard Stiegler retoma o mito de Prometeu e seu irmão esquecido (em mais de um sentido), Epimeteu, de modo a fortalecer os laços entre técnica e temporalidade. Como ele destaca na abertura da seção, o objetivo é destacar uma analítica existencial que deve ser interpretada em termos de prosteticidade – e, desse modo, ao desvelar a ligação entre tecnicidade e temporalidade, são desfeitas quaisquer apreciações segundo a qual a técnica se refere a uma temporalidade “falsa”, imprópria ou, o que deixa de ser um inadequado, “prostética”.
Com esse movimento, Stiegler consolida o movimento da antropologia à temporalidade no entendimento da técnica, vinculando a definição de humano e o uso da técnica como um e mesmo desdobramento.
O capítulo, assim como o restante do livro, está disponível no seguinte link.
Caderno de campo: Denise Ferreira da Silva
Nosso último encontro foi, com certeza, uma das reuniões mais tensas, conforme tentávamos lidar com a leitura de Denise Ferreira da Silva. Ao cabo, se não fosse a contribuição de nosso colega Pedro Drumond e a certeira referência a François Laruelle, teríamos terminado o encontro com um entendimento limitado e distorcido de Ferreira da Silva. Abaixo, seguem as principais conclusões do encontro:
1. Com referência a um dos capítulos de “A dívida impagável”, Pedro Drumond abordou a estrutura da reflexão de Denise Ferreira da Silva através do modelo oferecido pelo filósofo francês François Laruelle. Em sua visão, tal como Laruelle, Ferreira da Silva parte da oposição à separação entre o Um e o Zero, de modo a resgatar – e isso é minha interpretação – o que pode ser compreendido, via Michael Taussig parafraseando Hegel, como “trabalho do negativo”. Esse trabalho do negativo distingue entre o “nada” e o “nulo”, sendo o “nada” o oposto de um elemento pré-definido, enquanto o “nulo” é o que não entra ou é esquecido numa estrutura de pensamento – o que não deixa de ser muito diferente do esquecimento de Epimeteu na analítica da existência para Stiegler. Com base nisso, Drumond elucidou que a filosofia de Ferreira da Silva se coloca num espaço pré-decisional, recuando até um momento anterior à configuração moderna das raças. Nesse espaço pré-decisional, não se trata de defender a manutenção ou a superação de um horizonte racial ou pós-racial, mas de pensar outras formas de emergência da raça que não sejam marcadas pela violência moderna;
2. Junto disso, agora elaborando com os demais membros do grupo, torna-se compreensível que Ferreira da Silva trabalhe, junto com outros autores do pensamento negro, sobretudo do feminismo negro, uma espécie de “ética da recusa”. A escolha pelo espaço pré-decisional com relação à raça implicaria a recusa em aceitar os termos como a raça fez sua aparição na modernidade e continua a aparecer na contemporaneidade. O espaço da recusa é o espaço, portanto, da escolha por não produzir o mundo que temos, mas sondar outros mundos possíveis;
3. O caráter pré-decisional e a ética da recusa tornam mais compreensível a escolha pela poética como saída política para o projeto filosófico de Ferreira da Silva. Compreendida nesses termos, não se trata de uma retirada pela poesia, como se todo o resto tivesse falhado, mas da compreensão que a criação de mundo é um gesto poético que pode (ou deve) ser constantemente renovado e atualizado.
4. Quanto a isso, caso pensemos na filosofia da técnica, pode-se dizer que Ferreira da Silva toma para si um insuspeito aliado em Martin Heidegger, que propõe uma leitura da poiesis como resposta às insuficiências da técnica. É a escolha da poiesis não meramente como retorno nostálgico (uma dimensão presente em Heidegger, mas não em Ferreira da Silva), mas como resgate das possibilidades anteriores à configuração atual do mundo;
5. Por outro lado, uma questão que restou é sobre a capacidade de construir tal mundo conjuntamente, principalmente em termos político. Esse aspecto surgiu na contraposição entre Ferreira da Silva e, de certa forma, a tradição do feminismo negro e/ou do afropessimismo, com sua escolha por gestos poéticos, e o pensamento de outros autores, como Paul Gilroy. Sem resolver a questão, uma das conclusões às quais se chegou é que a saída para o mundo estranhamento fechado no qual Ferreira da Silva coloca sua reflexão, que parece tapar quaisquer frestas para além da estrutura que define, é apenas por meio de uma centelha de pensamento, isto é, de uma noção de revelação ou epifania que torna o mundo que temos “falso” e torna outros mundos e outras figurações da raça possíveis. Essa forma de filosofar, ao escolher a poética como espaço de resolução, traria o pensamento como revelação, e não como construção progressiva de um espaço comum.
6. Por fim, um ponto menos polêmico, mas que serve para precisão conceitual, é que a “transparência do sujeito” à qual Ferreira da Silva faz referência não é transparência do sujeito para si mesmo, como se o sujeito conhecesse a si em toda sua extensão. Caso fosse assim, a transparência do sujeito se chocaria com a característica principal da subjetividade moderna, que é a construção do sujeito como objeto de si, por exemplo na psicanálise, a qual indica a opacidade do sujeito, ou na técnica moderna, em que o sujeito é operador do aparelho, e não aquele que efetivamente o controla. Sendo assim, a transparência do sujeito diz respeito à relação de transbordamento do sujeito perceptível quando o sujeito olha para si e não reconhece seus limites, sendo incapaz de refletir sobre seus fundamentos por considerá-los evidentes. A transparência, portanto, é a incapacidade de se ver ou reconhecer.
Outras referências
Seminário de Yuk Hui. A Research Network for Philosophy and Technology, coordenada por Yuk Hui, divulgou a programação para o próximo mês. Entre outubro e dezembro, o seminário Dialogues on Philosophy and Technology, promovido por Hui na City University of Hong Kong receberá um time de peso para refletir sobre técnica e filosofia. O primeiro encontro, marcado para 14/10, às 14h (horário local), contará com Catherine Malabou. É possível participar gratuitamente do seminário, basta realizar inscrição por meio deste site.
Simondon, pensador da natureza. Se divulgamos a realização da série de seminários intitulada Simondon indisciplinar, promovida pela Red de Estudios Simondonianos, reunindo pesquisadoras e pesquisadores latino-americanos da obra de Gilbert Simondon, vale a pena também conferir o seminário Gilbert Simondon: Ecological, Aesthetical, and Technological Modes of Existence, que será realizado na Universidade de Hildesheim, na Alemanha, entre os dias 15 e 16 de outubro. A reunião contará, entre outros, com o já mencionado Yuk Hui, além de Cecile Malaspina, Anne Sauvagnargues e Andrea Bardin, além de outros intérpretes e pensadores que trabalham com a obra de Simondon.
O evento tem como objetivo discutir a obra de Simondon para além da filosofia da técnica, aproveitando a tradução para o inglês de sua tese principal, A individuação à luz das noções de forma e de informação. Para acompanhar, é só registrar nome, e-mail e demais informações no seguinte link.
Perder a mãe. Mencionamos no último encontro o trabalho de Saidiya Hartman, escritora e pesquisadora norte-americana, professora da Universidade de Columbia, e autora, entre outros, de Lose Your Mother: A Journal Along the Atlantic Slave Route. O livro é uma reconstituição do tráfico de escravizados no Atlântico euma reflexão sobre a perda das origens pela população negra norte-americana devido à escravização, reunindo a trama da história e da memória.
A obra de Hartman está sendo traduzida e editada aos poucos no Brasil. Recentemente, a revista Eco Pós, da UFRJ, publicou “Vênus em dois atos”, artigo no qual Hartman discute a presença da figura da Vênus nas representações da escravidão, ao mesmo tempo que reencena a violência do apagamento do arquivo e da memória dos escravizados. Já no site do GLAC, vale a pena conferir o pequeno “Abolição”, traduzido pelo pesquisador Allan Kardec Pereira, no qual Hartman comenta sobre os movimentos recentes pela justiça racial e as limitações que tais movimentos encontram na política partidária norte-americana e no pensamento político tradicional.
Colonialismo de dados. A editora Autonomia Literária divulgou a campanha de pré-venda do livro Colonialismo de dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal. Organizado por João Francisco Cassino, Joyce Souza e Sérgio Amadeu da Silveira, o livro traz contribuições de autores, alguns deles já mencionados na newsletter, como Tarcízio Silva, que refletem sobre a relação entre o funcionamento dos algoritmos e plataformas digitais e seus efeitos para o Sul Global. O livro está sendo vendido com valor promocional e a entrega será feita a partir de novembro.
Branquitude tecnológica. Ekow Eshun, crítico, curador e pensador britânico de origem ganesa e figura fundamental na fotografia e no audiovisual daquele país nas últimas três décadas, está com uma nova série na BBC Radio 4. Intitulada “White Mischief”, a série investiga a construção e o impacto da branquitude como ideal estético e moral. O segundo episódio trata da relação entre branquitude e o imaginário tecnológico, questionando porque a inteligência artificial (ou os ciborgues) são normalmente imaginados a partir de pessoas brancas. O primeiro e o segundo episódio estão disponíveis no site da BBC Radio 4, enquanto o terceiro episódio estará disponível a partir de 18/10.
A imagem do card desta edição do GTec é uma fotografia do meteorito de Bendegó, encontrado em 1784 na localidade de mesmo nome no sertão da Bahia e abrigado, desde o final do século XIX, no Museu Nacional do Rio de Janeiro. O meteorito foi um dos poucos itens da coleção do Museu que sobreviveram ao incêndio de 2 de setembro de 2018. Na Bienal de São Paulo, o meteorito de Bendegó é objeto de reapropriação por artistas indígenas, como Gustavo Caboco na instalação Kanau’kyba, do qual o desenho acima faz parte. Para muitos desses artistas, o meteorito de Bendegó não é apenas um objeto de ciência; pelo contrário, transforma-se num ancestral e num predecessor das histórias que os próprios povos indígenas vivem atualmente no Brasil.
Essa foi a nova edição da newsletter do GTec. Compartilhe, divulgue e se inscreva para receber nossas novidades. A newsletter é enviada quinzenalmente.
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