GTec Newsletter - 12.11
Newsletter quinzenal do Grupo de Estudos em Filosofia e História da Técnica
Olá, pessoal, essa é a mais nova edição da newsletter do Grupo de Estudos em Filosofia e História da Técnica. Nela, cobriremos os temas da sociogênese, psicanálise, tecnologia e raça, além de mencionar xenofeminismo e divulgar o próximo encontro, mais uma vez dedicado à obra de Bernard Stiegler.
Não esqueçam que temos um canal no Discord para conversar entre os encontros. Para acessar, é só clicar neste link. Lembrando que o convite tem duração de sete dias.
Divulguem, curtam, compartilhem e se inscrevam na newsletter através do botão abaixo!
Próximo encontro
O GTec realizará seu próximo encontro na próxima quarta-feira, 17/11, às 18h. O evento estará disponível logo mais no site da APPH com maiores informações. Lembrando que o link para a reunião no Zoom é disponibilizado logo antes do encontro no site da APPH.
No próximo encontro, continuaremos a leitura do primeiro volume de Técnica e tempo, de Bernard Stiegler. Leremos o penúltimo capítulo do livro, intitulado “Already There”, no qual o autor reforça a relação entre técnica e temporalidade na constituição do mundo humano ao explorar a constituição da vida comum (minhas palavras, não dele) através da linguagem. Para Stiegler, a linguagem é mais do que um instrumento, ela é uma técnica em pleno sentido – o que também implica uma concepção da técnica que não seja meramente instrumental. Nesse circuito entre linguagem e técnica, percebe-se que é a técnica que constitui o mundo humano, uma boa parte daquilo que Gilbert Simondon chamaria de transindividual.
Os últimos meses têm sido palco para uma leitura intensa do trabalho de Stiegler. Compreender sua proposta para a relação entre técnica e temporalidade, tecnicidade e antropologia; entender a estrutura de sua argumentação; as relações com outros autores, principalmente Martin Heidegger e Gilbert Simondon; mas também relacioná-lo com autores pouco considerados para a reflexão sobre a técnica, como Denise Ferreira da Silva e Sylvia Wynter, tudo isso tem feito parte do nosso percurso. Fica o convite para que vocês acompanhem as reuniões do GTec e compartilhem do empreendimento de não apenas ler esses autores, mas refletir sobre o mundo comum, incluindo os objetos técnicos.
O texto está disponível no seguinte link na pasta do GTec no Google Drive.
Caderno de campo: Sylvia Wynter
Nossa seção Caderno de Campo tem o objetivo de resumir os pontos principais do debate do último encontro. No caso, lemos “Towards the Sociogenical Principle”, de Sylvia Wynter, o que nos levou a voltar a refletir sobre a relação entre técnica e raça, tecnologia e antropologia e tecnicidade e mortalidade, todos temas que têm nos acompanhado nas últimas reuniões:
1. Abrimos o encontro retomando, a partir de Sylvia Wynter, uma pergunta que havíamos feito no debate de Race after Technology, qual seja, se a raça é uma tecnologia, o que ela produz? Uma resposta é que a raça produz cultura, separando aqueles que a têm daqueles que não a têm. Outra resposta, dada por Gabriel Gonzaga, é que a raça produz a própria separação entre o humano e o não-humano. Segundo seu argumento, trata-se, pode-se dizer, de uma “máquina teórica” (não foram suas palavras) que produz a humanidade a partir da manutenção do não-humano numa relação de exclusão. Nesse mecanismo, o indivíduo racializado só pode ser não-humano ou sub-humano.
Essa é uma intuição poderosa que será retomada no último item deste Caderno de campo;
2. Outra questão com a qual nos debatemos foi com o conceito de “sociogenia”, inicialmente formulado por Frantz Fanon e retomado sob a forma de princípio por Sylvia Wynter. Rafael Moscardi Pedroso destacou que a psicanálise de Fanon é anterior ao rompimento na teoria psicanalítica crítica com o complexo de Édipo, de modo que a sociogenia é, de certa forma, uma tentativa de pensar o funcionamento desse mecanismo em outras condições. Na união entre biologia, ontogenia e sociogenia, destaca-se que a matéria é significa de antemão na experiência social;
3. Uma pergunta, no entanto, é sobre o uso que Sylvia Wynter faz do conceito de sociogenia ao transformá-lo num “princípio sociogênico”. Conquanto seja perceptível que ela trabalha para desfazer qualquer concepção substancialista de ser humano, ao mesmo tempo em que questiona o multiculturalismo como saída para o problema da raça, pareceu haver certa tendência a cristalizar o conceito enquanto sociogenias específicas, e não necessariamente como uma categoria que dá conta da formação da subjetividade no geral. A questão não é necessariamente sobre o uso do conceito, mas sobre sua natureza, isto é, pode a sociogenia se tornar um conceito formal aplicado a diferentes situações? Se sim, como?
4. Junto disso, vale a pena destacar como a ênfase de Wynter na formação da subjetividade (com suas incursões na teoria da mente) a partir da sociogenia ilumina o projeto revolucionário de Fanon. Como tanto Gabriel Gonzaga quanto Rafael Moscardi Pedroso destacaram, a revolução, para Fanon, não é puramente material, mas também é um projeto de libertação libidinal que redundaria na formação de novos sujeitos. Nesse sentido, a sociogenia retorna – sem nunca ter saído, obviamente – ao mundo material, destacando que a revolução é a reunião entre reorganização material e libertação libidinal;
5. Voltando ao primeiro ponto, tudo isso conduz para a sugestão de Pedro Drumond acerca do que produz a raça. Voltando a Stiegler e a Denise Ferreira da Silva, ele destacou que, talvez, o que a raça produz é a consideração de uma vida sem valor, separando as vidas que têm valor e as que não têm. Em certo sentido, isso já estava previsto na discussão da semana anterior, quando, a partir de Stiegler, destacou-se o corte entre vivo e morto como resultado do aparecimento da tecnicidade.
Junto à questão da raça, a percepção de tal corte entre as vidas que valem e as vidas que não valem, que também é uma divisão na qual está imbuída a categoria de “humano”, implica pensar qual é o espaço para os projetos de emancipação vinculados à raça, uma vez que, como lembrou Gabriel Gonzaga a partir de Ramon Amaro, “se o negro é o problema, então o branco só pode aparecer como a solução”. De que maneira romper com isso? Talvez a ética da recusa de Denise Ferreira da Silva seja uma possibilidade, uma vez que, dentro desse mecanismo conceitual que organiza a vida dos indivíduos e limita os grupos racializados, a recusa se institua na interdição à produção de valor que inevitavelmente cria a hierarquia entre quem é valorizado e quem é desprezado.
Por fim, a questão também se abre para o papel da técnica e da filosofia. Contra Stiegler, seria possível afirmar que, quando a filosofia se apropria da técnica, ela parece produzir o corte entre vidas que valem e vidas que não valem. Se a produção da raça é um problema do encontro entre técnica e filosofia, existem outras formas de pensar a técnica que não resultem nessa situação? Talvez aí esteja a relevância do projeto de Simondon, que enquadra a técnica numa filosofia da vida que não tem a necessidade de produzir valor, saindo das categorias de vivo e não-vivo para enquadrá-las a partir das noções de forma e individuação.
Seria outra forma, como destacou Pedro Drumond, de entender o dito de Stiegler da técnica enquanto produção da vida por outros meios que não a vida.
Simondon, Baudrillard, Stiegler
A tríade de pensadores franceses acima tem aparecido recorrentemente nas reuniões do GTec. Como vimos, a relação entre os três é uma espécie de jogo de posições diferenciais em torno à consideração do vivo e do não-vivo, assim como do natural e do artificial expresso na categoria de “objeto”. Ainda que não seja inédita, a aproximação ainda rende muito para a discussão.
Para a relação entre Simondon e Jean Baudrillard, fica a referência de “Simondon and Baudrillard: Apoptosis in the High Tech Era”, de Arne De Boever, publicado no International Journal of Baudrillard Studies. No artigo, o autor trabalha o entusiasmo inicial de Baudrillard com Do modo de existência dos objetos técnicos, de Simondon, quando da publicação de O sistema dos objetos – de maneira diferentes, vale lembrar que ambos falam de objetos. A partir daí, ele passa do objeto à discussão do vivo e do não-vivo a partir do conceito de “apoptose”, explorado por Baudrillard em uma de suas obras tardias, A ilusão vital. O artigo, nesse sentido, faz a passagem da reflexão sobre a técnica encarnada no objeto para a abertura da filosofia de Simodon ao problema da vida.
Não temos O sistema dos objetos na pasta do GTec no Google Drive, mas disponibilizamos a tradução para o inglês de A ilusão vital.
Outra referência, agora sobre Stiegler, é o livro Stiegler and Technics, editado por Christina Howells e Gerald Moore. O livro é uma coletânea de dezessete ensaios de diferentes autores sobre aspectos da obra de Stiegler com relação à técnica. Lá está, não poderia faltar, a relação entre tecnologia e antropologia que temos explorado.
Ambas as sugestões foram cortesia de Pedro Drumond.
Biblioteca APPH
Na próxima sexta-feira, 12/11, às 19h, a Biblioteca APPH, ciclo de debates com autoras e autores de obras que dialogam com as preocupações da nossa instituição-mãe, trará Leo Foletto para o debate sobre seu livro, A cultura é livre: uma história da resistência antipropriedade, editado pela Autonomia Literária. A conversa será transmitida no canal de YouTube da APPH.
Leo Foletto é criador e coordenador do site BaixaCultura, dedicado à cultura livre no âmbito da pesquisa, experimentação e formação. A cultura é livre é a mais recente obra de Foletto e, no livro, o autor traça um panorama da discussão sobre a propriedade intelectual desde a Antiguidade até às rupturas introduzidas pela internet. Mais importante ainda, o livro aborda a questão dando o devido valor a perspectivas não-hegemônicas sobre a relação entre conhecimento e propriedade, como as perspectivas ameríndias e chinesa sobre o assunto.
O livro A cultura é livre pode ser adquirido com desconto no site da editora Autonomia Literária.
Lembrando que o GTec e Baixa Cultura já se encontraram na live com Pedro Telles da Silveira sobre o livro Tecnodiversidade, de Yuk Hui.
Outras referências
Sociogênese e tecnologia. Nosso principal tema do último encontro, o conceito de sociogênese, recebeu grande contribuição da leitura e do acompanhamento que nosso colega Gabriel Gonzaga fez do trabalho de Ramon Amaro. Professor de história da arte na UCL, na Inglaterra, Amaro tem atuado na interseccão entre os black studies, cultura digital, psicanálise e computação.
Dele, recomendamos o artigo “Towards a Black Individuation and a Calculus of Variations”, publicado na e-fluxem 2020, no qual o autor lê a formação do sujeito negro – tema de Peles negras, máscaras brancas, de Frantz Fanon – à luz do conceito de individuação proposto por Simondon. Para Amaro, a principal vantagem que Simondon traz é pensar a individualidade para além da metafísica substancialista.
Além desse artigo, também fica a dica do diálogo entre Amaro e Yuk Hui sobre inteligência artificial, técnica e trabalho. Na conversa, talvez o mais interessante seja a discordância de base entre os autores, uma vez que a perspectiva de Amaro é informada pela sociogenia, enquanto tal dimensão está ausente da proposta de Hui. Disponível no YouTube.
Ambas as sugestões foram feitas por Gabriel Gonzaga.
Psicanálise e raça. Já Rafael Moscardi Pedroso lembrou dos trabalhos das psicanalistas brasileiras Neusa Santos Sousa, Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, e Isildinha Baptista Nogueira, Significações do corpo negro. Os dois trabalhos são exemplares no cruzamento entre raça e psicanálise, abordando a formação subjetiva a partir do que também pode ser definido, seguindo a matriz fanoniana, de sociogênese. São dois trabalhos que valem a pena resgatar.
Vermelho, negro e branco. Qual a estrutura de uma relação de exclusão? Ela mantém aquilo que é negado como parte de seu sistema de construção da significação ou é um elemento oculto e incondicionado pela estrutura estabelecida? De certa forma, essa pergunta – que é uma filosófica – foi desdobrada como parte da análise cultural por Frank B. Wilderson III em Red, White & Black: Cinema and the Structure of U.S. Antagonisms.
No livro, Wilderson analisa em detalhe a representação da raça no cinema hollywoodiano, explorando a triangulação entre o branco, o indígena e o negro, que representariam, respectivamente, o humano, o semi-humano e o não-humano. A partir daí, o autor constrói um argumento essencial no que viria posteriormente a ser o afropessimismo: a existência de um antagonismo que prende o semi-humano e o não-humano na condição de possibilitar a existência do humano, o branco.
Xenofeminismo. O canal Transe, no YouTube, fez uma live há algumas semanas sobre xenofeminismo, coletivo/conceito/movimento criado pelo Laboria Cuboniks, grupo formado por pesquisadoras, artistas e ativistas que resgata as conexões entre feminismo e tecnologia, principalmente a partir do grupo de pesquisadores britânicos do CCRU. Vale a pena conferir a conversa e o time de convidadas, que contou com Cássia Siqueira, Bianca de Oliveira, Daniela Avellar e Damares Pinheiro.
Tecnologias do oprimido. A editoria Milfontes já disponibilizou para pré-venda o livro Tecnologia do oprimido: desigualdades e o mundano digital nas favelas do Brasil, resultado da tese de doutoramento do jornalista David Nemer. O livro é resultado de uma extensa etnografia do uso das tecnologias digitais pelas populações menos favorecidas do país, junto da elaboração de um quadro teórico que permite compreender as tecnologias digitais, principalmente as redes sociais, como espaço de alienação e ferramenta na luta pela liberdade. O livro estará para venda a partir de 22/11.
Prometheus II, de Maria Martins, que também assina a arte do card de divulgação do próximo encontro do GTec. A escultura brasileira está com uma retrospectiva no MASP, em São Paulo, que revaloriza sua obra enquanto fundamental para o surrealismo do século XX e como expressão de uma nova ênfase em histórias da arte que destaquem o papel das artistas mulheres nas vanguardas do último século.
Essa foi a nova edição da newsletter do GTec. Compartilhe, divulgue e se inscreva para receber nossas novidades. A newsletter é enviada quinzenalmente.
Lembrando que o GTec é uma atividade apoiada pela Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades, com sede em Porto Alegre e ramificações por todos os lugares que a internet alcança. É uma organização sem fins lucrativos, mantida apenas pelo trabalho dos colaboradores e pelas atividades realizadas nela. Por esse motivo, se você puder, apoie a APPH através da conta do apoia.se/apph