GTec Newsletter - 09.12
Newsletter quinzenal do Grupo de Estudos em Filosofia e História da Técnica
Esta é a mais nova (e penúltima) edição da newsletter do GTec do ano. Vamos comentar sobre o próximo encontro, finitude, criatividade e os perigos do pessimismo. Nos acompanhem!
Não esqueçam que temos um canal no Discord para conversar entre os encontros. Para acessar, é só clicar neste link. Lembrando que o convite tem duração de sete dias.
Divulguem, curtam, compartilhem e se inscrevam na newsletter através do botão abaixo!
Próximo encontro
Nosso próximo encontro acontecerá na quarta-feira, 15/12, às 18h. Mais informações e o link para a reunião, que sempre é disponibilizado logo antes do encontro, estarão disponíveis no site da APPH logo mais.
Na próxima reunião, leremos o último capítulo do primeiro volume de Técnica e tempo, de Bernard Stiegler. Com isso, concluiremos um dos principais projetos do GTec neste ano.
No último capítulo, “The Disengagement of the What”, Stiegler termina sua reflexão ao retomar a relação entre o que e o quem da técnica. Utilizando ambas as posições para realizar a crítica de Martin Heidegger, o capítulo defende a extensão da proposta de Edmund Husserl para incluir uma dimensão adicional da retenção, a qual ele chama de “retenção terciária”. A retenção terciária vincula mais fortemente técnica, memória e tempo.
O texto pode ser acessado no seguinte link. Para esta edição, também acrescentamos (finalmente!) a tradução para o espanhol do livro. A versão em espanhol pode ser acessada aqui e também está disponível na pasta do GTec no Google Drive.
Caderno de campo: Denise Ferreira da Silva e a equação de valor
A dívida impagável, livro de Denise Ferreira da Silva, motivou as discussões do último encontro. Nosso objetivo ao lê-lo foi desenvolver mais amplamente as relações entre tecnologia e a noção de vida que, vistas através da raça, desafiavam reflexões sobre a técnica que a relacionavam com a própria definição do humano. Como veremos a seguir, a discussão foi intensa e amarrou vários pontos – além de soltar outros – que já vínhamos discutindo nos últimos encontros:
1. Uma primeira questão a destacar é a maneira como Denise Ferreira da Silva utiliza certos conceitos, principalmente a noção de “coisa” que é articulada ao longo dos textos. Inicialmente, a “coisa” é uma resposta à coisa-em-si kantiana. Quanto a isso, Ferreira da Silva parte do juízo estético da terceira crítica de Kant, o que destaca o papel da estética em sua reflexão. A partir daí, ela critica a noção de “efetividade” que constitui a medida do sucesso do juízo kantiano, ou seja, a extensão até à qual é possível que o julgamento molde a realidade. Buscando a “coisa” para além do juízo, a implicação é que o sujeito de conhecimento entrevisto por Ferreira da Silva é distinto daquele sujeito que se origina na crítica kantiana;
2. Um segundo ponto, ainda relacionado à coisa, foi levantado por Pedro Drumond a partir da crítica de Ferreira da Silva à dialética hegeliana. Quanto a isso, o principal problema é compreender o que a autora entende por “ontoepistemologia”. Como destacou, Hegel propõe que, diante da “coisa” indefinida, a reação do sujeito é buscar medi-la para conhecê-la. Medimos, portanto, devido à incapacidade para lidar com o que é indefinido. A “ontoepistemologia” provém daí, ou seja, é a transposição do que sabemos ou acreditamos saber para a forma como as coisas são (ou deveriam ser). Esse engano do sujeito, que acredita conhecer o mundo, mas na verdade reduz à sua própria medida ecoa a “transparência” que Ferreira da Silva condena no sujeito ocidental que não percebe sua própria racialização em Toward a Global Idea of Race;
3. Uma dificuldade que surgiu e que não foi resolvida, porém, é o desafio lançado por Ferreira da Silva à dialética. Ela propõe uma série de outras estruturas de pensamento, sobretudo certa “fractalidade” do saber que decompõe os critérios, identificados no ensaio que dá título ao livro, da separabilidade, determinabilidade e sequencialidade. Ainda que o avesso de tais critérios mostre uma proposta de conhecimento possível a partir da equação de valor, ainda é difícil saber como tal inversão é feita;
4. Quanto à equação de valor, é benéfico referenciar os termos pelos quais ela mesma a define, isto é, como uma ferramenta da poética negra feminista para lidar com a maneira como a raça surge no pensamento e na vivência ocidental moderna. A equação de valor, portanto, antes de se referir à fórmula matemática da vida e não-vida é uma resposta à cena originária que restringe a raça ao que Ferreira da Silva chama de Mundo Ordenado, o qual é caracterizado pela hierarquia racial;
5. A equação de valor, por sua vez, contrapõe o valor máximo de vida ao valor mínimo de vida, representados por +1 e -1, respectivamente. Segundo a leitura proposta por Pedro Drumond, o mais interessante na equação de valor é como ela não pressupõe a hierarquização entre vida e não-vida. O propósito da equação é desfazer a valorização associada à vida, abrindo um campo independente do valor para que a categoria de vida perca seu privilégio frente ao não-vivo;
6. Uma questão também não resolvida, porém, é se ao abandonar a hierarquização entre vida e não-vida através do jogo, nas palavras de Pedro Drumond, entre a “vida nula” e o “nada de vida”, Ferreira da Silva mantém ou não a noção de vida. Mantendo-a, isso significa que a autora esposa um vitalismo que não é correspondente à “forma de vida”, algo próximo da crítica do hilemorfismo de Gilbert Simondon, ou ela desfaz a categoria de vida ao anunciar o princípio não-vital como igualmente significativo? E, ao fazê-lo, seria o não-vital uma forma de evitar qualquer generalização, ao contrário da vida, que imediatamente implica uma hierarquização que é, pode-se dizer, uma forma de ontoepistemologia?
7. Tomando o fio aberto pela referência ao hilemorfismo, é preciso também mencionar as críticas de Gabriel Gonzaga à proposta de Ferreira da Silva. Para Gabriel, como levantando no encontro, a proposta de uma matéria sem forma parece abdicar da técnica como parte do mundo. Para fundamentar seu argumento, ele recordou de Simondon e da compreensão – simondoniana – da técnica como ativação de formas. Dessa maneira, se a matéria sem forma é o principal signo de uma ética da recusa do mundo tal como é, não se acaba, nessa recusa, por rejeitar também a técnica como pharmakon que pode oferecer o caminho de transformação do mundo para além do mundo tal como ele é?
8. Essa crítica conduz, por fim, ao significado da própria técnica junto às categorias de vida e de humano. Em outras palavras, se a técnica é uma força de inacabamento do mundo, de postergar a realização e a completude do mundo, concordando com certa leitura do Dasein, ou se a técnica é uma maneira de encerrar e enquadrar as formas do mundo. Ferreira da Silva parece adotar a segunda perspectiva, mas o problema levantado no GTec e, de certa maneira, corroborado por Stiegler é que a técnica pode ser o primeiro também;
9. E, para encerrar, comentamos também da relação entre técnica e mundo. Seria o inacabamento do mundo resultado da ação antrópica que identifica humanidade e mortalidade como exceções no mundo da continuidade e da regularidade natural, divina e animal? Ou é próprio da técnica, independente da humanidade, ser agente de transformação e inacabamento? A pergunta, difícil, incide sobre a possibilidade de pensar que a técnica pode não estar necessariamente relacionada à preservação da vida, lembrando do dito de Stiegler da continuação da vida por meios que não a vida. O que significa uma técnica que não está a serviço da vida tampouco da humanidade mas nem por isso é inimiga de ambas as categorias?
Outras referências
Finitude e pensamento. Uma referência que passou batida e deveria ter sido mencionada na última edição da newsletter é sugestão de nosso colega Pedro Drumond. A Finite Thinking, coletânea do filósofo francês Jean-Luc Nancy, traz uma série de reflexões sobre a relação entre temporalidade e encerramento. Tentando escapar a qualquer “retrogosto heideggeriano” – expressão cunhada por Rafael Moscardi Pedroso em nosso último encontro e que merece registro aqui –, a leitura que Nancy faz da relação entre Dasein e tecnologia antecipa muitos temas de Stiegler, principalmente a relação entre a técnica e o inacabamento do mundo. O livro, na tradução para o inglês, está disponível na pasta do GTec.
Atlântico negro revisitado. A tese de Fernando Baldraia, atualmente editor de diversidade na Companhia das Letras, foi mencionada no último encontro e está disponível na pasta do GTec no Google Drive através do seguinte link. Intitulada Time Betwee Spaces: The Black Atlantic and the Recent Brazilian Historiography of Slavery, a tese, defendida na Frei Universität de Berlin, é uma proposta de leitura do Atlântico negro não como um espaço geográfico e uma época histórica bem definidas, mas como desafios a concepções tradicionais de tempo e espaço na historiografia que repercutem sobre uma leitura original da historiografia brasileira sobre a escravidão.
Para quem quiser conhecer mais sobre essa proposta de leitura do Atlântico negro por Baldraia, fica a sugestão de sua participação no podcast Práticas desobedientes em 2019, indicado por nossa colega Carolina Sinhorelli.
Para além disso, Baldraia tem ganhando destaque na mídia devido a seu trabalho como editor. Para conhecer mais sobre sua atuação, indicamos a leitura desta breve entrevista que ele concedeu à Folha de Pernambuco. Junto disso, também recomendamos a escuta do episódio do podcast da Companhia das Letras, no qual, junto com Jeferson Tenório, debate Notas de um filho nativo, livro de ensaios de um dos favoritos do GTec, James Baldwin.
Luxo do pessimismo. Paul Gilroy voltou a ser destaque nas páginas do The Guardian. Agora, em entrevista, ele destaca sua relação com a cultura negra britânica, as diferentes experiências de pessoas negras nos Estados Unidos e no Reino Unido, o Black Lives Matter e argumenta, ao final, que não é possível se dar ao luxo de ser pessimista:
Eu não acredito que possamos nos dar ao luxo de sermos pessimistas. Eu me senti desanimado ultimamente, mas quando eu vi pessoas jovens nas ruas durante a pandemia, com suas máscaras, distanciados, anunciando ao mundo que o racismo é algo ruim, me senti inspirado e encorajado. Essa bandeira foi adotada amplamente e algumas das pessoas que a defendiam eram muito jovens. Isso traz esperança. A questão é se essa mobilização pode ser a fonte de um movimento que as pessoas podem manter. É aí que meu próprio pessimismo me alcança, porque eu não sei se as tecnologias que levam as pessoas à rua são tão assim em mantê-las lá.
Criatividade e cosmotécnica. A newsletter The Creative Independent, focada em processos criativos de artistas de linguagens diversas, recentemente publicadou uma entrevista com a artista sonora Sheryl Cheung. Originária de Taiwan, Cheung abordou os significados e as práticas da escuta, a utilização de partituras gráficas e, principalmente, a relação entre o uso de tecnologia avançada e maneiras tradicionais chinesas de conceber a criação artística. Nomeados mais de uma vez, Yuk Hui e seu conceito de cosmotécnica são referências para a prática da artista. A entrevista pode ser acessada aqui.
O card de divulgação do próximo encontro do GTec traz uma obra do fotógrafo italiano Franco Vimercati (1940-2001). Algumas de suas obras estiveram recentemente em exposição no Centro Cultural do Banco do Brasil em São Paulo e estarão em exibição na unidade do Rio de Janeiro do CCBB como parte de uma mostra dedicada ao bolonhês Giorgio Morandi (1890-1964). Pintor abstrato de naturezas mortas suspensas no tempo, Morandi é o autor do quadro acima, simplesmente intitulado “Natura morta”, datado de 1962.
Essa foi a nova edição da newsletter do GTec. Compartilhe, divulgue e se inscreva para receber nossas novidades. A newsletter é enviada quinzenalmente.
Lembrando que o GTec é uma atividade apoiada pela Associação de Pesquisas e Práticas em Humanidades, com sede em Porto Alegre e ramificações por todos os lugares que a internet alcança. É uma organização sem fins lucrativos, mantida apenas pelo trabalho dos colaboradores e pelas atividades realizadas nela. Por esse motivo, se você puder, apoie a APPH através da conta do apoia.se/apph