GTec Newsletter - 09.04
Newsletter quinzenal do Grupo de Estudos em Filosofia e História da Técnica
Olá, pessoal, essa é a mais nova edição da newsletter do GTec – nossa primeira edição completa de 2022! Informações sobre o próximo encontro, colonialismo recursivo, xenofilia, comunidades algorítmicas e por onde anda Foucault, é o que você encontrará na edição de hoje.
Próximo encontro
Visto que nosso último encontro se concentrou em torno da filosofia de Denise Ferreira da Silva, retomaremos no próximo dia 13/04, às 18h, para continuação do debate acerca da relação entre técnica e a noção de humanidade e a leitura do nosso texto colaborativo, que resume alguns achados e conclusões dos debates em 2021.
Para nos aquecermos para o encontro, sugerimos como leitura principal “Towards Black Individuation and a Calculus of Variation”, antes elencado como texto complementar, de Ramon Amaro e Murad Khan, ambos autores que exploram a filosofia de Gilbert Simondon. O ensaio apresenta o experimento de um diálogo entre Simondon e Frantz Fanon para compreensão e resolução da alienação do Negro via linguagem.
Buscando romper com o pressuposto isomórfico, Amaro e Khan sugerem pensar a individuação do Negro a partir do método da alagmática de Simondon, que consiste em pensar um conjunto de relações que perpassam a transformação de um composto estrutural em outro. Por essa ótica, os autores atentam ao potencial pré-individual do Negro que deve se realizar na passagem de uma relação interindividual alienante para uma transindividual, não funcional, como aspirou Simondon. Com Amaro e Khan, nossas perguntas anteriores sofrem uma leve transformação: não se trata mais de questionar como a técnica pode não rebaixar o humano, ou como a técnica pode não produzir escravizados, e sim como é possível a técnica não produzir o Negro.
Mais informações sobre o encontro podem ser encontradas no site da APPH, onde também será disponibilizado o link da reunião logo antes de seu início.
Caderno de campo: Luciana Parisi e Denise Ferreira da Silva
“Black Feminist Tools, Critique, and Techno-poethics”, de Luciana Parisi e Denise Ferreira da Silva, como outras vezes que lemos a última autora, gerou uma série de debates. Entre desconfortos e aberturas teóricas, avançamos um pouco na reflexão sobre a relação entre técnica, raça e humanidade. Os principais desdobramentos da discussão estão elencados a seguir:
0. Numa abordagem inicial, é importante ressaltar a relação de semelhança e diferença entra as duas partes do texto, escritas por Parisi e Ferreira da Silva. Embora sejam bastante distintas entre si, existe uma continuidade, como lembrou Pedro Drumond, entre as duas seções. Na primeira, Parisi busca desarmar a crítica da técnica pela poética, que apresenta ambas como opostas entre si, enquanto na segunda seção, de autoria de Ferreira da Silva, explicita-se como Parisi desarmou a binariedade entre técnica e poética. No conjunto, o texto propõe que uma tecnopoética feminista negra, como diz o próprio nome composto do conceito – “tecnopoética” – só é possível superando a oposição, tão ambígua em Martin Heidegger, por exemplo, entre técnica e poética;
1. Estabelecido isso, a questão seguinte é entender a relação entre a tecnopoética feminista negra proposta pelas autoras e a poética negra feminista elaborada por Ferreira da Silva em seus textos, como destacou Cássia Siqueira. Parte disso ocorre pela compreensão do procedimento levado a cabo por Ferreira da Silva (mais uma vez) neste texto.
1a. O processo de Ferreira da Silva parece ser, como já feito em outras obras de sua autoria que lemos, a proposição de uma espécie de “hackeamento”, aliás explicitado na leitura do encontro. O hackeamento implica que a crítica acompanha o objeto ou sistema criticado, sem necessariamente ser fiel a ele. Quanto a isso, Gabriel Gonzaga levantou a crítica, bastante pertinente, sobre as possibilidades do hackeamento. Se o hack não destrói, mas funciona junto com o sistema, será que não o reforça? Afinal, e isso é intervenção minha, existem inúmeros exemplos de hackers “cooptados pelo sistema”...
1b. Uma outra forma de compreender esse procedimento é, como dizem as autoras, ao final do texto, que sua intenção é a produção de ruído na relação entre técnica e poética, embaralhando a comunicação. Isso condiz com a proposta de Ferreira da Silva de uma filosofia e/ou poética a partir da negação, a qual implica simultaneamente a aceitação dos termos através dos quais a realidade se apresenta – por exemplo, a hierarquia racial e a transformação dos sujeitos negros em objeto – e sua posterior negação – é a partir do reconhecimento dessa situação que os termos da equação podem ser invertidos. Esse é o hack ou ruído da sua filosofia.
2. Com relação a isso, porém, uma questão levantada é o recurso ao mito de Prometeu pelas autoras. Pedro Drumond destacou que Parisi faz uma leitura “genérica” do mito. Em outras palavras, ao contrário de Bernard Stiegler, que reescreve o mito para justificar a atuação de Prometeu a partir da falha de Epimeteu, Parisi o utiliza apenas como emblema do papel supostamente destacado da humanidade a partir da elaboração da técnica. O que as autoras destacam, e isso condiz com nossa investigação nos últimos meses, é que a produção de escravizados é desde já uma consequência do mito de Prometeu;
2a. Quanto a isso, Pedro Drumond considerou que as autoras não pretendem corrigir o conceito de técnica, para o que poderia ser necessária a elaboração de outro mito para justificá-la, e sim pensar a partir da técnica tal como se apresenta hoje. Cássia Siqueira, avançando a questão, destacou que não existe nada no conceito de técnica que pressuponha servilidade, a não ser seu enquadramento na visão – mais lembrada por Heidegger – da Gestell. Numa abordagem mais histórica e/ou multiculturalista, esse seria o ponto de partida para lembrar que existem outros mitos da técnica (e que nem mesmo Prometeu é a única figura da mitologia grega responsável pela técnica);
2b. De qualquer forma, a questão permanece: o que fazer com Prometeu? Bernard Stiegler, vale lembrar, necessitou do mito de Prometeu para conceitualizar a técnica, ao mesmo tempo que o enquadrou, como destacou Pedro Drumond, numa história da racialização do conhecimento e da especiação do humano. Caso aceitemos essa proposição, torna-se mais fácil compreender a sugestão do “hack” que as autoras propõem sobre o mito. Não se trata de descartá-lo ou reescrevê-lo, mas acompanhá-lo para rejeitá-lo: a tecnopoética é a refundação do mito de Prometeu de modo que ele não sirva mais para a produção de escravizados, isto é, para a racialização do conhecimento e para a especiação do humano (ou das formas de vida no geral, uma vez que o mito também justifica o domínio dos humanos sobre os demais seres viventes do planeta);
3. Outro conjunto de críticas tem relação com a apropriação que as autoras fazem da computação. De fato, o tema do incomputável é uma constante no texto, produzindo aquele excesso ou sobra que não pode ser enquadrado no “colonialismo recursivo”, categoria de Parisi que logo abordaremos mais. Para as autoras, a computação e essa forma de colonialismo se reforçam, daí sua recursividade, ao pensar o mundo numa série de binarismos, dos quais o par técnica e poética, em sua oposição, é um deles.
Cássia Siqueira, retomando tal argumento, lembrou que, na verdade, parece haver uma série de confusões no entendimento das categorias de binaridade e dualismo quando aplicadas à computação, não sendo possível afirmar que o computador necessariamente reduz o mundo a pares conceituais opostos. Quanto a isso, Siqueira recomendou Xenofilia e desnaturalização computacional, de Patricia Reed, que trata do assunto;
3a. O tema, porém, é mais amplo porque a referência à computação no texto das autoras serve para criticar a oposição entre o sujeito livre-pensante, de um lado, e as máquinas servis, de outro, assim como para a condenação da redução da razão ao automatismo computacional que estaria presente (e isso não é citado necessariamente por elas) em projetos de inteligência artificial. No encontro, destacou-se que a formulação das autoras talvez seja limitada, ainda que não incorreta, pois a comparação só é possível a partir da redução tanto das potencialidades da razão quanto do autômato computacional.
Em outras palavras, e aqui vale o lembrete da obra de Reed, precisamos de outras metáforas para entender o fenômeno computacional.
4. Com relação a isso, é pertinente a precaução introduzida por Rafael Moscardi Pedroso na crítica das críticas feita por Luciana Parisi no início do texto. Tanto a crítica do algoritmo-mestre quanto do capitalismo de plataforma, mencionadas pela autora, repousam sobre a possibilidade de ocupar um lugar externo sobre o qual julgar a validade de ambas. Que lugar é esse? O posicionamento das autoras parece se justificar apenas caso se aceite a postura liminar que seu “hackeamento” do pensamento filosófico perfaz;
5. Na mesma toada, surge a dúvida sobre o que seria a ferramenta tecnopoética negra. Segundo as condições para sua existência elencadas por Ferreira da Silva, essa seria uma ferramenta que questiona a própria ideia de utilidade e/ou de funcionamento;
6. Para encerrar, houve um ponto de tensão no entendimento do que é o “colonialismo recursivo” proposto por Parisi. Como indagou Rafael Moscardi Pedroso, é o colonialismo que, em sua estrutura histórica, adquire caráter recursivo ou a recursividade que, em seu funcionamento, se torna colonial? Ainda que parece ser uma precisão conceitual, a questão é relevante porque traz novamente o problema da historicidade e, com isso, da possibilidade de contingência num pensamento, como aquele de Fereira da Silva, que parece extrair seu potencial do fechamento de suas possibilidades.
Outras referências
Xenofilia e xenogênese. Já comentado acima, mas vale destacar Xenofilia e desnaturalização computacional, de Patricia Reed, editado pela Zazie, que faz uma crítica da limitação do pensamento em torno ao papel do algoritmo na atualidade. Uma categoria oposta em seu potencial analítico, mas condizente com a crítica de Reed, ainda que mais voltada à pesquisa empírica, é a proposta de Wendy Chun e de uma série de autoras e autores de pensar a “homofilia” presente nos sistemas computacionais. Chun e seu time remontam a origem (não-computacional) da atração do semelhante pelo semelhante na engenharia de sistemas sociais, retraçando suas consequências. Para acessar o texto, publicado pela e-flux, basta clicar aqui.
Por fim, vale a pena ler “Xenos e a mulher negra: pensando a partir de escrevivências”, de Bianca de Oliveira Corrêa, que utilizou a formulação de Reed para ler as obras de Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Disponível na pasta do GTec no Google Drive.
Colonialismo recursivo. O conceito de Parisi foi tema de uma longa fala da autora na Duke University em setembro de 2020, felizmente disponível no YouTube. Parisi destaca que a recursividade está no centro do colonialismo gerado pelo capital, descrevendo a interrelação entre funções algorítmicas de predição computacional e do conhecimento. É a partir dessa relação de predição e conhecimento, algo próximo da ontoepistemologia de Ferreira da Silva, que o colonialismo e a recursividade se reforçam. Para entender mais da proposta da autora, segue o link para a palestra.
Parisi também tratou do assunto recentemente na Critical Inquiry, em “Recursive Philosophy and Negativa Machines”, no qual aborda a aproximação entre filosofia e computação. No texto, ela argumenta que, para pensar ambas juntas, é necessário levar em consideração a categoria de “decisão”, de modo a “abrigar as atividades heréticas da proposições maquínicas”.
Infelizmente indisponível, se alguma alma caridosa quiser enviar o .pdf do novo texto de Parisi mencionado acima, ficaremos gratos.
Modulação e controle. Se o colonialismo e a recursividade se reforçam, quais as saídas para ambos? Ainda que não abordando o conceito de Parisi – afinal, é anterior a sua formulação –, o artigo de Yuk Hui, “Modulation after Control (Simondon contra Deleuze)” não deixa de tratar das possibilidades de outras formas de imaginar a tecnologia. O autor reelabora a percepção do aparecimento das sociedades de controle, tornadas famosas no pós-escrito de Gilles Deleuze, a partir da categoria de “modulação” e sua relação com a tecnologia, levantadas em texto de Gilbert Simondon de 1961. Com o conceito, Hui pretende mostra que existem maneiras de se contrapor à “desindividuação” nas sociedades de controle e que a modulação como imposição de formas não é o único resultado da tecnologia. A individuação, vale lembrar, não pode parar.
Comunidades algorítmicas. Nunca é demais lembrar do trabalho de Tarcízio Silva quando o assunto é raça e tecnologia. Quanto a isso, mencionamos no encontro o capítulo 13 da coletânea Comunidades, algoritmos e ativismos digitais: olhares afrodiaspóricos, organizada pelo pesquisadora da UFABC, intitulado “Estudo comparativo do sistema de divinação ifá e ciência da computação”. Escrito por Femi Ololade alamu, Halleluyah O. Aworinde e Walter Isharufe, o texto é uma boa lembrança da existência de outras genealogias da técnica que não a ocidental.
Junto disso, destacamos que Tarcízio Silva está com novo livro na praça, editado pelo Sesc. Racismo algorítmico: inteligência artificial e redes digitais está disponível para venda desde o dia 21 de fevereiro e pode ser adquirido aqui.
Por fim, no mesmo tema, a editora Ciências Revolucionárias começou a vender Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana, de Deivison Faustino e Walter Lippold. Os dois autores, especialistas em Frantz Fanon, abordam a relação entre pensamento revolucionário, crítica marxista e a crítica da técnica para propor a descolonização da tecnologia em sua configuração atual. Disponível aqui.
Da tecnopolitica à cosmotécnica. O PimentaLab, laboratório de estudos de tecnologia, política e conhecimento da Unifesp, promoverá na próxima quinta-feira, 14/04, às 19h30, uma formação com Henrique Parra no tema “Da tecnopolítica às lutas cosmotécnicas”. Para acessar o texto e o link da discussão, é só mandar e-mail para pimentalabunifesp@gmail.com.
Falando nisso, vale a pena conferir os materiais do PimentaLab, que incluem uma entrevista com Lucas Villalta, autor de Simondon: uma introdução, sob o tema “Simondon, filosofias macumbeiras & magias técnicas”. Disponível aqui.
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