GTec - Newsletter - 03.09
Newsletter quinzenal do Grupo de Estudos em Filosofia e História da Técnica
Olá, pessoal, esta é a mais nova edição da newsletter do GTec. Nela, divulgaremos o próximo encontro, o qual trará um recuo estratégico até Rousseau, e apresentaremos outras referências já clássicas, como Michel Foucault, Ludwig Binswanger, Jacob Burckhardt, Ernst Kantorowitcz e Jacques Derrida. Tudo para ganharmos força e avançarmos em nossa reflexão sobre o humano.
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Próximo encontro
Nosso próximo encontro, intitulado “Tecnologia e antropologia”, ocorrerá na quarta-feira, 1º/09, às 18h. O link para o encontro no Zoom estará disponível no site da APPH logo antes do encontro.
O encontro é motivado pela leitura de Técnica e tempo, de Bernard Stiegler, tema da última reunião, e pelo papel de Jean-Jacques Rousseau no estabelecimento de uma antropologia relacionada à técnica que também é uma das bases do processo filosófico de racialização da humanidade. Com o intuito de revisar a leitura que Stiegler faz do pensador iluminista, nosso encontro também tem o objetivo de perceber como técnica e antropologia se encontram na consideração do humano e daquilo que Paul Gilroy chamou de “infra-humanidade”.
Para isso, leremos o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, publicado originalmente em 1755. Embora seja uma reflexão sobre a teoria política, Stiegler lê a obra como uma espécie de narrativa mitológica do surgimento da humanidade qua aparecimento da tecnicidade. Para Stiegler, Rousseau fundamenta a origem conjunta da tecnologia e da antropologia, embora esse movimento seja negado pela separação entre o ser humano no estado de natureza e o ser humano já dotado de tecnicidade. No que Stiegler batiza de “segunda origem”, a técnica ocupa espaço ambíguo no plano da cultura, já que Rousseau simultaneamente aceita o papel das próteses tecnológicas na definição do humano, ao mesmo tempo que as rejeita como símbolo da artificialidade.
O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens está disponível em diversas versões e é facilmente acessível online. Para o encontro, recomendamos a leitura da tradução da coleção Os Pensadores, na qual o Discurso vem acompanhado de outras obras relevantes do iluminista francês, como as reflexões sobre a origem da linguagem e sobre o contrato social.
O livro, em formato .pdf, está disponível na pasta do GTec no Google Drive.
Mais Stiegler
Continuando nossa biblioteca sobre Bernard Stiegler, nesta edição da newsletter acrescentamos apenas uma referência, mas extremamente importante e densa para refletir sobre o filósofo francês.
Cortesia de nosso colega Pedro Drumond, o artigo “Laruelle qua Stiegler: On Non-Marxism and the Transindividual”, de Ekin Erkan, é um contraponto à leitura feita por Alexander Galloway e Jason R. LaRivière em “Compression in Philosophy” da obra de François Laruelle. Colocando em diálogo ambos autores, Stiegler e Laruelle, Galloway e LaRivière argumentam contra a relação feita pelo Stiegler tardio entre a “proletarização” dos sentidos resultando da técnica moderna e o que denominam a “compressão” de nossa relação com a realidade, principalmente a partir da fragmentação dos meios hipomnésicos, para utilizar o linguajar de Stiegler. Contra isso, Galloway e LaRivière defendem, a partir de Laruelle, uma permanência no âmbito comprimido da realidade, o que também seria sinônimo do imanente versus o transcendente e, da mesma forma, do genético versus o universal.
Toda essa argumentação é retomada por Erkan, que mostra os limites da contraposição entre Stiegler e Laruelle, criando um diálogo produtivo entre os dois. No artigo, Erkan reconstitui o pensamento dos autores contra o pano de fundo da teoria política, derivando implicações que buscam sair da conclusão – talvez conformista? – apresentada por Galloway e LaRivière. O artigo também é valioso por explorar uma série de outros pensadores, entre eles Yuk Hui, que derivam suas obras das reflexões tanto de Stiegler quanto de Laruelle.
Vale lembrar que o livro de Galloway exclusivamente sobre Laruelle, que é também uma crítica à digitalidade, já foi mencionado na newsletter e está disponível na pasta do GTec no Google Drive. Quanto à Stiegler, acabamos mentindo e teremos de acrescentar mais uma referência. Trata-se de For a New Critique of Political Economy, livro de 2010 que serve de mote para a reflexão de Galloway e LaRivière. Fica o convite para entrar nesse debate.
Caderno de campo de Stiegler
Nesta newsletter, iniciamos uma nova seção para registrar as principais perguntas e/ou conclusões às quais chegamos em nossa leitura de Stiegler. O objetivo é constituir uma memória de questões entre um encontro e outro, assim como abrir ao público que não pode comparecer o que é que foi discutido. São pequenas notas de leitura, apresentadas a seguir:
“Tecnologia e antropologia”, o segundo capítulo de Técnica e tempo, volume 1, é o primeiro momento no qual Bernard Stiegler tanto coloca suas cartas na mesa quanto demonstra como é possível aceitar os pressupostos heideggerianos sem confirmar suas conclusões. Com isso, torna-se mais fundamentada sua reunião, por um lado, da crítica da técnica moderna e da própria modernidade; por outro lado, a reabilitação da tecnicidade; e, por fim, a categoria de “humano” que lhe serve de contraponto de origem;
O capítulo também consolida parte do “método” de Stiegler, principalmente a aplicação de leituras retrospectivas a elementos do passado. No caso, é a técnica moderna que, mesmo em sua relação faltosa com a humanidade, torna possível perceber o caráter de ausência que é intrínseco à origem da humanidade. Sendo assim, Stiegler se contrapõe à leitura heideggeriana segundo a qual a técnica moderna estabelece uma relação imprópria com o humano, o que implica também a manutenção da ideia de “humano” e de “natureza”, para demonstrar que, de alguma forma, a técnica moderna efetivamente realiza a metafísica tornando-a inócua. Em outras palavras, a técnica moderna revela uma verdade sobre o Ser, mas é uma verdade vazia;
A relação entre tecnologia e antropologia, por sua vez, também desobriga a antropologia de atestar a origem e/ou a unicidade do ser humano, tudo isso porque a origem do humano é “vazia”;
Existe um ponto de tensão, porém, que é a leitura de Gilbert Simondon. Em que exatamente consiste a técnica para Stiegler. A pergunta se justifica porque, para Simondon, o objetivo era reabilitar o objeto técnico, o qual estaria sendo prejudicado pela relação com o ser humano. Entretanto, se passamos do objeto técnico para a técnica em si, o propósito não pode mais ser a reabilitação do objeto técnico, e sim o “conserto” da relação estabelecida entre técnica e ser humano. Confirma-se, portanto, a suspeita de que a leitura de Stiegler, ao contrário de Simondon, só é possível através da aceitação o pressuposto da existência da Gestell heideggeriana;
Uma segunda tensão, que ainda precisa ser resolvida, é com relação a Hegel. Quando Hegel é mencionado por Stiegler, é normalmente para fazer concordar com Simondon e fazer contraponto a Heidegger. O que significa evocar Hegel para corroborar uma leitura de Simondon? Por que Stiegler lê Simondon de maneira hegeliana?
Por fim, o conceito amplo de técnica de Stiegler já anuncia a relação entre técnica, memória e exteriorização, que depois estará na origem (sem trocadilhos) de sua argumentação a favor da “retenção terciária”. Durante a reunião, foi levantado que talvez este ponto esteja na origem da rejeição que um dos seguidores de Stiegler, Yuk Hui, faz do giro ontológico. Ao contrário deste, talvez para Yuk Hui simplesmente não seja possível voltar ao mito para encontrar outras histórias da técnica ou alternativas da modernidade, mas prosseguir das exteriorizações que já temos para reconstruir alternativas baseadas nos preceitos, aí sim oriundos de Simondon, do transindividual. É, no entanto, uma questão em aberto, pois o próprio Stiegler retorna ao mito para traçar genealogias alternativas da técnica, sobretudo em sua leitura do mito de Epimeteu como origem da técnica.
Outras referências
Tempo e técnica. No último encontro, foi sugerido que a técnica é uma das formas de instituir a sucessão temporal, e não simplesmente uma maneira de evitar ou driblar a morte, o que traria implicações problemáticas para a relação entre indivíduo e espécie. Como uma forma de criar a sucessão do tempo, a técnica pode ser expandida para além dos objetos técnicos e abarcar também conceitos, práticas e, até mesmo, instituições. Nesse sentido, vale a pena reler as obras clássicas de Jacob Burckhardt e Ernst Kantorowicz, A cultura do Renascimento na Itália e Os dois corpos do rei (em inglês), respectivamente, para compreender a relação entre tempo, técnica e política.
Beirando o desastre. A diferenciação feita por Stiegler entre o desastre e a catástrofe – basicamente, a diferença entre a possibilidade de continuação após um trauma e a aniquilação completa – serviu para lembrarmos de outras referências que têm o desastre como ponto de partida. Uma delas é este pequeno ensaio de Catharine Malabou sobre a relação entre o self e as consequências de traumas cerebrais, principalmente AVCs. De certa forma, o que Malabou pergunta é como continuar, isto é, como reconstruir o eu após essa forma de estranhamento de si que é originária do próprio corpo.
Uma segunda referência, a qual também tem o corpo como foco, é o pequeno O intruso, de Jean-Luc Nancy, disponível aqui na tradução para o inglês. Partindo da necessidade que o próprio filósofo teve de passar por um transplante de coração, ele reflete sobre o que significa ter o órgão de outra pessoa dentro de si.
O Intruso foi transformado num filme de mesmo nome por Claire Denis, estrelando Jean-Louis Trintignant. Filme duro e difícil, mesmo assim vale a pena vê-lo.
O fim do humano. Já nosso colega Rafael Moscardi Pedroso destacou o texto “Os fins do homem”, de Jacques Derrida, como reflexão relevante para o questionamento acerca do humano. Como em outras iniciativa do filósofo francês, o objetivo é tanto a desconstrução da metafísica – no caso, da ideia de “humano” – quanto o diálogo com a tradição filosófica anterior, principalmente a “Carta sobre o humanismo”, de Martin Heidegger. Não sabemos ainda quando, mas já incluímos “Os fins do homem” em nosso programa de leituras. No Brasil, o texto foi lançado no volume Margens da filosofia, junto de outros textos seminais de Derrida.
Obra de Lee Scratch Perry que está na 34ª Bienal de São Paulo. Nesta semana, o mundo perdeu o grande músico e produtor jamaicano. Nascido em 1936, Perry é uma figura fundamental no desenvolvimento do ska ao reggae, além de inventor do dub. Ele explorou o estúdio como instrumento de criação e também foi escritor, poeta e artista visual. Sua contribuição para a música mundial é imensa e sua importância para o desenvolvimento daquilo que é chamado, no Reino Unido, de "bass cultures”, tão influente no Atlântico negro, não pode ser subestimada. Rest in power, Perry.
Essa foi a nova edição da newsletter do GTec. Compartilhe, divulgue e se inscreva para receber nossas novidades. A newsletter é enviada quinzenalmente.
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